Em meus sonhos inquietos…
Eu vejo aquela cidade…
Silent Hill.
Você prometeu que me levaria lá novamente algum dia…
Mas nunca o fez.
Bom, eu estou lá sozinha agora…
Em nosso “lugar especial”…
Esperando por você…
Tenho tido bastante dificuldade pra escrever sobre Silent Hill 2. Acredito que esta dificuldade se deve ao fato de que Silent Hill 2 é, provavelmente, meu jogo favorito. Ou, se não isso, ao menos meu jogo de terror favorito. Desta forma, eu não queria que meu texto sobre ele no Suco de Mangá fosse um simples recontar dos eventos do jogo pra quem não o conhece, ou um daqueles reviews com notas elencando aspectos como “gráficos” e “jogabilidade”, ou mesmo uma listagem das coisas que eu mais aprecio sobre esta obra-prima. Não, o que eu queria é que fosse algo especial, que demonstrasse todo meu apreço, uma carta de amor a um jogo que me marcou.
Acredito que, para realmente fazer isso, preciso falar sobre o que a frase “meu terror favorito” de fato engloba. Gosto de me considerar um grande fã e relativamente bom entendedor do gênero, especialmente nos games, mas no cinema também. No entanto, para a grande maioria das pessoas, quando você começa a falar sobre “filme de terror”, a primeira coisa que vem à mente costuma ser algum slasher. De certo, não culpo essas pessoas: os assassinos mascarados de séries como Halloween, Friday the 13th, Nightmare on Elm Street, ou Scream, são, de certa forma, icônicos e memoráveis, perfeitos poster boys para o gênero. Mas uma coisa que estes filmes não têm são protagonistas bem trabalhados.
Mas não quero que isso dê a entender que acho que esta leva de filmes que mencionei não tem seus méritos, afinal de contas, Halloween é meu slasher favorito e eu o amo e defendo. O que quero dizer é que, por mais que Halloween seja incrível no que se propõe a fazer, a protagonista, Laurie, é basicamente um veículo que leva a audiência entre cada cena de impacto. Nós não aprendemos quase nada sobre Laurie, tirando a questão moralmente dúbia de quase todos os slashers: ela é a “virgem”, e portanto ela não vai ser brutalmente assassinada. Desta forma, o centro da atenção é Michael Myers e a forma surpreendente como ele vai aparecer em cantos de quadros onde você não estava prestando atenção.
O que eu quero dizer quando falo “meu terror favorito” é outro tipo de história. Vamos direcionar nossos olhares para algo como, por exemplo, “The Shining”. O filme acompanha Jack Torrance, um novelista que aceita um emprego como caseiro no Hotel Overlook durante o inverno, e espera que um tempo sozinho com sua família no hotel dê uma melhorada no seu bloqueio de escritor. O filme deixa claro, no entanto, que mesmo que haja alguma evidência de que forças sobrenaturais assombram o hotel, Jack já sofria de um problema com alcoolismo muito antes dos eventos da atual história começarem. Durante os 144 minutos do filme, acompanhamos a deterioração do estado mental de Jack e da sua relação com a família, com uma certa ambiguidade sobre o que está provocando tal deterioração, os fantasmas do hotel ou a garrafa de whisky. Assim, não é um filme sobre a parte na qual ele ataca a família com um machado, mas sim sobre dinâmicas familiares. A isto, costumeiramente se dá o nome de “terror psicológico”, onde as partes mais grotescas são resultado de um estudo interessante de temas e personagens.
Os protagonistas de games, ao menos até 2001, ano de lançamento de Silent Hill 2, tendiam a cair no primeiro grupo de terror que mencionei. Tomemos como exemplo a série Resident Evil. Não me levem a mal, adoro a trilogia original, mas pensemos por um minuto: o que sabemos sobre Jill Valentine ou Chris Redfield? Que eles são bons policiais, e… não muito mais. Ao mesmo tempo, os acontecimentos do jogo pouco tem a ver com quem eles são como personagens, e sim uma sequência de sustos e encontros com zumbis pela qual estes personagens percorrem. O que eu mais gosto sobre Silent Hill 2 é que ele foi o jogo que finalmente desbravou o terror psicológico, e gosto especialmente de como o jogo usa a mídia dos games para comunicar seus temas.
É imediatamente aparente que esta será a abordagem que Silent Hill 2 utilizará, assim que você aperta “New Game”. A introdução consiste em um homem se olhando no espelho de um banheiro dilapidado, e fica evidente que não está tudo bem com ele. Ele lentamente passa a própria mão em frente ao rosto, como se não conseguisse se enxergar no espelho, como se seu corpo estivesse dormente de alguma forma. Esse cara se chama James Sunderland, e ele é o ponto focal de Silent Hill 2. Ao sair do banheiro, James vai até o parapeito do estacionamento onde ele parou o carro de forma toda torta, e nos conta qual é o seu objetivo: ele recebeu uma carta de sua esposa, Mary, dizendo que ela estaria em Silent Hill esperando por ele. Só tem um probleminha grave aí, que é o fato de que ela morreu três anos atrás. Isso já é suficiente para colocar uma dúvida na cabeça do jogador, resultando numa separação entre o jogador e o protagonista. Claramente, algo de errado não está certo com nosso amigo James.
Agora, para falar sobre como o jogo explora o personagem de James, eu preciso entrar em território de spoilers. Estou falando sobre o jogo original, Silent Hill 2, lançado em 2001 para o Playstation 2, então já é um spoiler de quase 25 anos, mas entendo que há toda uma nova geração de jogadores que só estará tendo contato com esta pérola dos games com o lançamento do remake de 2024, e toda a história do jogo original está presente no remake, ainda que com pequenas alterações. Então, se o leitor tiver pretensão de jogar o recente remake, peço que não me deixe estragar sua experiência, e leia o restante do texto apenas após finalizar o jogo.
A revelação bombástica do final do jogo é que James não foi completamente honesto com a gente. Mary não morreu três anos atrás, ela foi diagnosticada com uma doença não-especificada há três anos. A morte dela se deu em outro momento: uma semana atrás, quando James a sufocou com um travesseiro. É no momento desta revelação que todo o restante do jogo é recontextualizado, especialmente no que diz respeito aos outros personagens que acompanhamos durante o jogo e aos monstros que perseguiram James durante todo o percurso.
Nós encontramos, durante o jogo, três personagens que representam diferentes facetas da exploração do personagem de James. A primeira pessoa que encontramos é Angela Orosco, no cemitério de Silent Hill, pouco depois da introdução. Ela diz estar procurando por sua mãe, tal qual James procura por Mary, mas a forma como ela se expressa demonstra uma falta de convívio social. Na próxima vez que a encontramos, nos apartamentos de Blue Creek, Angela está deitada em frente a um espelho, contemplando seu próprio reflexo na lâmina de uma faca. James tenta convencê-la de que há sempre uma saída. Ela parece se acalmar, mas quando James conta sobre estar procurando por sua esposa morta, ela visivelmente reage de forma desconfortável. Ela entrega a faca para James, mas não sem antes reagir com surpresa quando ele se aproxima, demonstrando visível desconexão com a realidade, resultado de um sentimento de culpa fulminante.
Só encontramos Angela novamente ao explorar os labirintos nas profundezas de Silent Hill. Destoando completamente dos ambientes anteriores, encontramos uma porta coberta de recortes de jornal. Ao chegar perto dela, ouvimos Angela gritar de dentro, e corremos para descobrir um monstro que lembra duas figuras em cima de uma cama, em uma figura bastante sugestiva, atacando-a. Enquanto enfrentamos o monstro, podemos reparar que todas as paredes da sala são circundadas por orifícios, onde pistões entram e saem, novamente, de forma sugestiva. Nunca é dito pelo jogo de maneira explícita, porém, a ambientação, a forma do monstro, e as reações de Angela, levam à conclusão de que o que a trouxe a Silent Hill foi que ela matou o pai em autodefesa contra um comportamento abusivo.
O final de Angela é, de longe, o mais comovente. Após a revelação do que James fez, o estado mental dele transforma o Lakeside Hotel em um lugar inundado e corroído pela água, mas quando encontramos Angela, de repente, nos vemos de frente a uma escada em chamas. Ela agradece a James por tê-la salvo, mas também gostaria que ele não tivesse feito isso, pois até mesmo sua mãe disse que ela merecia o que tinha acontecido. Antes de se resignar a ser consumida pelas chamas, ela explica: “Agora você está vendo? Para mim, é sempre deste jeito.” A narrativa de Angela representa uma internalização extrema do evento traumático, algo que também pode acontecer com James, e o resultado é trágico.
Encontramos Eddie nos apartamentos de Wood Side. Antes dele, um corpo humano recém-assassinado dentro de uma geladeira. Eddie está num banheiro próximo, abraçado à privada e vomitando. Ele imediatamente toma uma postura defensiva, dizendo que não foi ele, ele não fez nada. Por conta desta postura, James questiona se ele sabe alguma coisa sobre esses monstros, e em especial sobre essa “coisa vermelha de pirâmide” que tem assombrado os apartamentos, mas Eddie nega. Contudo, ele também demonstra saber que James foi trazido à cidade, de alguma forma.
Quando o encontramos novamente na prisão, Eddie carrega um revólver e está resmungando sobre como matar alguém não é nada de mais. Outro corpo debruça-se sobre uma das mesas, mas dessa vez Eddie tenta se justificar, dizendo que ele mereceu e que ele teria tirado sarro de Eddie. James se recusa a aceitar essa justificativa, e então Eddie muda seu discurso, dizendo que só estava brincando e que o corpo já estava lá quando ele chegou. Toda essa atitude suspeita se confirma quando, no labirinto, temos a oportunidade de ver o mundo como Eddie vê, um frigorífico gélido cercado de corpos, onde ele acredita que todos estão tirando sarro dele. Como consequência, uma palavra mal escolhida de James faz com que Eddie o ataque, e não temos escolha senão matá-lo. Durante a luta, Eddie se vangloria sobre como atirou em múltiplas pessoas e até mesmo em um cachorro que ele acreditava estar rindo dele. Ao contrário de Angela, Eddie representa uma resposta ao trauma que externaliza tudo, e se torna cruel a partir da crueldade sofrida.
Os personagens que são mais diretamente interligados com a história de James, e que talvez sejam os mais interessantes, são os de Pyramid Head e Maria. Pyramid Head aparece pela primeira vez nos apartamentos, e a princípio ele parece ser mais um monstro tipo stalker, possivelmente familiar para quem já conhecia Resident Evil 3: Nemesis, mas ele tem um diferencial que o torna muito mais tenebroso e nojento; a gente dá de cara com ele, digamos, abusando sexualmente dos outros monstros múltiplas vezes durante a passagem pelos apartamentos. Isto, é claro, faz parte da simbologia relacionada a nosso amigo James.
Após escapar dos apartamentos, James se direciona ao que ele acha que é o seu lugar especial com Mary, o parque na beira do lago. Lá, ele encontra Maria, uma mulher que poderia ser irmã gêmea de Mary, pois seus rostos e vozes são idênticos. No entanto, ela tem cabelos loiros com a pontinha pintada em rosa, se veste de maneira a exibir mais o corpo, e age de forma mais provocativa com James, instigando-o com sutis toques durante as conversas, e até mesmo sugerindo levá-lo a outro “lugar especial” que descobrimos ser um clube de strip (e incidentalmente, ela até tem a chave do lugar escondida no decote). É como se Maria fosse, talvez, uma versão idealizada do que James esperava de sua esposa.
Ao explorarmos o hospital, as relações entre esses personagens vão ficando mais claras. Maria te acompanha por um período de exploração, mas ela eventualmente começa a tossir e resolve repousar dentro de um quarto, em clara alusão à doença não especificada de Mary. O jogo vai te dando cada vez mais pistas de que a simples existência de Maria não é uma coincidência, e sim uma representação utilizada para punir James. Isso chega no seu ápice ao final da sequência do hospital, onde você e Maria estão prestes a deixar o hospital através de corredores estreitos, e Pyramid Head os surpreende aparecendo logo atrás, resultando numa perseguição em que Maria fica para trás, e James é obrigado a ver o monstro a atravessando com uma lança.
Esse ponto vai sendo repetido conforme avançamos. Ao chegar na sociedade histórica, nós descobrimos de onde James tirou a imagem de Pyramid Head em sua cabeça: um quadro enorme mostrando como se vestiam os carrascos de Silent Hill em épocas anteriores. No labirinto, encontramos Maria novamente, viva e agindo como se a parte em que a lança a atravessou nunca tivesse acontecido. Na cutscene mais memorável do jogo, ela conversa com James a respeito de memórias que apenas Mary poderia ter, e James mostra-se visivelmente confuso, mas a essa altura do campeonato, ele apenas aceita, mostrando ainda mais sua instabilidade. Toda a exploração do labirinto gira em torno de encontrar uma forma de alcançar Maria, e quando James finalmente consegue, ela já está morta novamente, como se a cidade forçasse James a reviver a morte de Mary de novo e de novo.
Novamente, nunca é falado com todas as letras que Maria, o próprio Pyramid Head e até mesmo os outros monstros que enfrentamos durante o jogo são essas representações da frustração sexual de James ao ter que cuidar de sua esposa enferma, mas uma de minhas coisas favoritas sobre Silent Hill 2 é justamente isso, esta possível abertura a outras interpretações, esse dizer através de semiótica, essa falta de conclusão rígida. Os últimos enfrentamentos que temos no jogo são: uma luta contra dois Pyramid Heads, luta esta que se inicia com Maria sendo assassinada novamente e James finalmente entendendo qual é o propósito dessa passagem por Silent Hill; e outra luta contra uma representação mais grotesca e deformada de Maria, que pretende não permitir que James se recupere destes traumas. Mas antes destas lutas, precisamos passar por um corredor muito longo onde nada acontece, além de ouvirmos uma memória de James onde Mary, num estado mental e físico já muito abalados por conta da doença, primeiro demonstra a degradação de sua autoestima, depois age com raiva e manda James embora, apenas para imediatamente pedir para que ele não a deixe. São momentos de partir o coração, que demonstram uma humanidade incrível ao não transformar James em um completo monstro, mas sim mostrar duas pessoas tendo que enfrentar uma situação injusta e complicada, e cometendo seus erros.
Eu gostaria de ter mais tempo e mais palavras para falar sobre absolutamente tudo que amo em Silent Hill 2. Queria falar sobre o que representa cada monstro (e porque as enfermeiras sexualizadas não fazem sentido em nenhum outro Silent Hill que não esse), falar sobre a sutileza dos diálogos, sobre como todos os corpos que encontramos pelas ruas são o modelo de James e a simbologia disso, queria falar até mesmo sobre como a jogabilidade é antiquada e esquisita e um dos quebra-cabeças envolve usar uma ferradura, um isqueiro e um boneco de cera para criar um alçapão! Mas vou ter que me contentar com essa pequena demonstração, e espero que ela incentive o pessoal que não conhece a dar uma procurada e jogar essa pérola. Ou a jogar o remake, que também serve.