Publicado de 2018 a 2022 por Yayu Murata, o mangá de TsumaSho recebeu um anime bastante aguardado nesta temporada. Sua proposta choca um pouco os mais agitados do lado de cá do globo, mas não tenha dúvidas: este foi um dos animes mais comoventes do último trimestre. E o turbilhão de pensamentos e emoções sentidos durante estes episódios eu deixo aqui para vocês em mais um Review!
Com um aviso de spoilers, como manda a boa educação
Keisuke Nijima é o seu típico salaryman japonês. O cabelo tigelinha, os óculos ocupando dois terços da cara e o jeito todo desengonçado de se expressar fecha o bingo do trabalhador colarinho branco de escritório. De bom coração, ele encontra Takae. A química flui bem e os dois, eventualmente, se casam. Tudo vai bem nessa nova família, que dá a luz a Mai. Até o trágico dia em que um acidente de carro ceifa a vida de Takae, devastando o coração de sua mãe e sua filha.
Dez anos se passam. O brilho do lar dos Nijima deu lugar à monotonia pálida de um dia a dia inconformado com a morte precoce de Takae. Nesse cenário de luzes parcas e refeições pré-prontas, certa tarde a campainha toca. À frente, uma menina de olhar sério e repreensivo se apresenta: Takae Nijima, a esposa falecida de Keisuke, no corpo de uma menina de 9 anos.
MAIS UMA HISTÓRIA DE REENCARNAÇÃO: O QUE MUDA?
A partir daqui as reações a TsumaSho se dividem. Os sensíveis largam rápido de mão, achando que será um anime de lolicon sem nem prestar atenção a nada além mais do que os próprios preconceitos. Os mais pacientes, ou ainda melhor, os curiosos, percebem que o anime conta uma história de luto e uma segunda chance para rever seus entes queridos.
Emocionante por si só é o exercício de imaginação de poder rever quem um dia se foi. A volta de Takae restaura a alegria perdida, mas as broncas não demoram. Ela se preocupa com o estado de coisas de seu marido e sua filha dez anos depois de sua morte e tenta, com esse reencontro, dar um empurrão na vida dos dois. Final feliz, mais uma história de reencarnação como vemos em tantos outros animes, fim dos problemas. Certo? Errado.
As dúvidas mais óbvias de uma história típica de reencarnação são prontamente abordadas em TsumaSho. Se uma pessoa volta como uma criança, ela ainda é a mesma pessoa de antes? Essa nova pessoa tem pai e mãe diferentes dos avós da Mai. É uma outra vida, uma outra família, uma outra circunstância, ainda que a alma e as lembranças neste corpo sejam da Takae. A riqueza narrativa de TsumaSho vêm justamente do modo inteligente como a obra constrói sua intriga em torno dessas questões.
FAMÍLIA IDEAL X FAMÍLIA REAL
Enquanto Keisuke e Mai recompõem suas vidas, Takae deve conciliar seu reencontro com sua nova vida como Marika. Se TsumaSho começa os primeiros episódios contando a história de uma família ideal vitimada pela fatalidade, a história de Marika retrata um lar não tão ideal assim, mais próximo do real do que muitos de nós gostaríamos. A menina é uma aluna do fundamental e a escola é um espaço de alento em oposição à sua casa, onde mora com a mãe, Chika. A mãe impõe medo à filha, conturbada pelas inseguranças de criar uma menina sozinha e afogada em sentimentos mistos de tristeza e raiva, causados por uma vida de abandono e destratos pela família e pelos homens que passaram pela sua vida.
O anime dedica um tempo relevante desenvolvendo a mãe de Marika. Seu tema lembra um tanto o desenvolvimento de Saeko, a mãe de Chi no Wadachi, mangá que já escrevi sobre neste site. Temos aqui em comum a história de uma mãe violenta (abusiva, no caso do mangá), esmagada pelo peso de seus próprios traumas e decepções que a impedem de agir de acordo com o que se exige de uma mãe. A casa e a filha negligenciada é menos pelo fato nobre de Chika trabalhar o dia inteiro para sustentar a casa sozinha, que ninguém tire este mérito dela. O que ocorre é que o ambiente reflete o estado desordenado de suas emoções, que são descontadas violentamente em Marika, que agora é Takae Nijima. Em segredo, uma mãe observa outra e começa a entender pouco a pouco, enquanto se disfarça de criança e filha, como algumas famílias enfrentam mais desafios que outras.
ESBOÇO DE CRÍTICA: CONVENIENTE DEMAIS?
Os conflitos dessa reunião repentina com a vida de uma menina alheia a tudo isso se resolve com relativa facilidade. Os Nijima se encontram com Chika, eles se vêem obrigados a contar a verdade, por mais inacreditável que seja, e por um momento a mãe de Marika começa a se confrontar com o que ela tem sido até então, como mãe e o que ela passou na infância pelas mãos da própria mãe, que a destratava e, na velhice, só vê a filha como um auxílio financeiro. Ela jurou ser diferente, mas as referências à sua volta e as dificuldades da vida aproximaram Chika do que ela mais detestou a vida inteira. O risco de perder sua filha para uma alma reencarnada no corpo de Marika impôs um senso de urgência para rever suas ações. O que ela faz com louvor, fazendo de Chika uma das personagens mais bem desenvolvidas do anime.
Mas ainda é fato que as coisas ainda assim acontecem fáceis demais. Se uma crítica pode ser feita a TsumaSho, pode-se dizer que, sob olhares mais céticos, tudo acontece fácil demais. Um desajeitado como Keisuke arruma uma esposa ideal pelo mais puro acaso. A mãe de Marika fica chocada em saber que sua filha não é mais ela, mas a reencarnação da falecida esposa de seu vizinho, mas se convence do fato com muita mais facilidade do que se esperaria e muda sua atitude para melhor. Mai muda de vida, arruma um novo emprego após a volta da mãe e, tão fácil quanto 1+1=2, ela conhece um homem gentil do interiro, Renji e assim tão facilmente nasce dali um amor e um casamento… esse excesso de conveniência pode ser de duas uma: ou uma liberdade poética do autor para escrever seu conto de fadas, o que está no seu direito, ou um incômodo particular de um cínico que sabe que a vida é muito mais complicada e inconveniente do que se sonharia.
ASSUNTO BUDISTA
A boa notícia é que TsumaSho leva sua história sobre reencarnação a um nível além do habitual, a ponto de chegar à raíz mesma da questão do que é reencarnação propriamente dito, recorrendo à tradição budista para desenvolver sua história. Tudo começa quando Takae se vê satisfeita com os rumos que sua família vêm tomando desde seu reencontro há um ano e adormece, dando lugar de volta à menina Marika, que acorda desesperada no meio dos Nijima sem saber como foi parar ali, nem lembrar de nada dos últimos meses. Ali a realidade bate à porta: Takae está morta. A menina que nasceu dez anos atrás não é Takae, mas Marika Shiraishi. Por isso Keisuke resolve se consultar com um monge, alguém bem versado nas coisas espirituais, para saber de fato o que está acontecendo.
Ao ouvir a história de Keisuke, o monge o esclarece de que o que acontece com Takae e Marika não é um caso de reencarnação. Os budistas bem o sabem, vivemos em constante ciclo, de existência em existência, até alcançarmos a Iluminação, ou, o Buda. Mas quando completamos o ciclo e reencarnamos, nós não recuperamos as memórias da vida passada, nem compartilhamos duas lembranças no mesmo corpo. Esse já é um caso de possessão. As duas coisas combinaram para que Takae voltasse: sua alma atribulada, preocupada com sua família e o que seria dela sem sua presença não a permitiu descansar em paz. Enquanto isso, a alma sofrida de Marika, vivendo com medo da mãe e desejando um descanso dessa situação, deixou seu corpo “livre” para que Takae pudesse voltar ao mundo mais uma vez.
É relevante para esse entendimento, que a expressão que o anime usa é joubutsu (成仏). A palavra é lugar comum no Japão e tanto seu uso, quanto a origem, são estritamente budistas. O butsu, ou hotoke (仏) é o buda. Não necessariamente o Sidarta Gautama, mas todo aquele que alcança a Iluminação e põe fim ao ciclo de encarnações (o samsara). Em tradução literal, joubutsu significa “tornar-se um buda”, e no dia-a-dia, “alcançar o pós-vida”, ou seja: seguir seu caminho para a próxima encarnação. Remorsos e questões mal resolvidas são fonte de várias lendas de fantasmas, maldições e espíritos vagantes no Japão, sendo tarefa dos vivos zelar pela paz das almas e auxiliar a sua partida para uma nova encarnação. Keisuke percebe então que a presença de sua esposa é graças à sua incapacidade de seguir em frente, permitindo que a morte de Takae congelasse a sua vida e a vida de sua filha no tempo. E esse milagre do reencontro surge às custas da presença da pequena Marika no mundo, o que ele, como pai, não é capaz de aceitar, pois ele jamais iria querer o mesmo para si.
O objetivo de Keisuke fica claro: permitir que a alma de Takae descanse em paz.
O LUTO: COMO SEGUIR ADIANTE?
Se dando conta destas coisas, TsumaSho segue para sua reta final, bastante dolorosa e ponto central de sua história. TsumaSho é uma história sobre luto. Muitas lágrimas são derramadas até essa aceitação. Para Mai, naturalmente, aceitar a perda da mãe é extremamente difícil e ela passa boa parte do anime sob a pretensão de que sua mãe está de volta para acompanhá-la daqui pra frente. A realidade do luto é tão angustiante, que Mai se faz uma pergunta fundamental sobre qualquer relacionamento; se no final das contas seremos todos separados pelo nosso fim último, que é a morte, para que conhecemos pessoas em primeiro lugar? O questionamento tem vida curta em sua cabeça, porque ela se dá conta rápido de que pensar assim é o mesmo que se arrepender de encontrar essas pessoas que fizeram da sua vida algo que valeu a pena. Keisuke, ciente de sua responsabilidade como pai, faz de tudo para garantir à sua esposa de que ele poderá se virar sozinho, seguir a vida adiante e, assim, devolver Marika para sua mãe, que vive adormecida no subsconciente enquanto Takae vive como uma criança.
O anime chega a cogitar um novo romance na vida de Keisuke, graças a Moriya, sua colega de trabalho. Fica ali, no ar, implícito e não necessariamente correspondido. A linguagem amorosa de TsumaSho, aliás, é fundamentalmente implícita, sem a enxurrada de “eu te amo” jogadas a esmo pelos nossos romances. Apesar de marido e mulher se reencontrarem por um milagre, a preocupação dos dois, de início a fim, gira em torno de sua filha. Ao se despedirem, no lugar do “eu te amo”, que eles já são bem conscientes disto a essa altura, há o “Cuide bem da Mai”/”Deixe a Mai comigo”. O futuro que mora à frente, com o casamento de sua filha à vista e, num momento qualquer, a chega de um neto ou uma neta, impõe a nós outro questionamento. Há mesmo a necessidade de um recomeço? Seria mais emocionalmente produtivo casar-se de novo pela conveniência de não ficar só, ou manter aceso esse zelo pelo seu primeiro amor, olhando e cuidando de perto do resultado desse amor e sua nova família? As escolhas aqui são várias. Keisuke poderia ter perfeitamente se casado com Moriya, ou ele poderia simplesmente ficar com a pesca e seu trabalho. No fim das contas, o que mais importou a Keisuke foi a gratidão por ser abençoado com uma esposa e uma família. Um dia todos nos reencontraremos, pois como diria Oda Nobunaga prestes à morte, diante das coisas eternas, nossa vida é um reles sonho passageiro.
CONCLUSÃO: UM CONVITE PARA VALORIZAR
TsumaSho é um dos animes mais emocionantes dessa temporada. Se eu que sou eu, marejei várias vezes durante esses 12 episódios, trate de preparar esses lenços, porque a choradeira é certa. Se você já passou por uma experiência de perda, esse anime serve como uma ótima reflexão para essa parte intrínseca da vida, que é o luto. Claro, nada nos prepara para este momento, mas entre os vivos nos consolamos e seguimos em frente. Esta é a lição valiosa de TsumaSho, que vali aqui nossos 4 suquinhos.
Se você leu até aqui, tenha ótimas festas, um feliz Natal e um feliz Ano Novo. Abrace de vez em quando seus entes queridos. Sejam eles seus pais, ou um amigo, ou mesmo àquele mutual de Twitter ou Discord com quem você troca algumas interações aqui ou acolá. Ninguém vive inteiramente só e nunca se sabe quando será nossa última vez de valorizar os nossos.