Mais uma distopia escrita pelas mesmas mãos que criaram O Conto da Aia, livro que inspirou uma série de grande sucesso. Agora num mundo mais futurístico, Margaret Atwood nos impressiona com a ousada ficção O Coração é o Último a Morrer. Apesar do livro ter sido lançado em 2015 na Grã-Bretanha, ainda é inédito no Brasil por ter chegado ainda esse ano pela Editora Rocco.

A proposta da trama não é muito difícil de entender, num futuro não muito distante houve um colapso econômico e social nos Estados Unidos. Assim, um casal faz tudo o que for preciso pra conseguir sobreviver dia após dia. A partir dessa premissa, uma rede de escolhas irresponsáveis, desconfianças e situações absurdas passam a se desenvolver.

Bom, sabendo que a Editora Rocco tem uma coleção de livros maravilhosos no seu acervo, e conhecendo o potencial de Margaret para escrever uma história impressionante, as expectativas para esse livro são altas. Então nesse Review meu objetivo é falar se o livro entregou o que os leitores esperavam. Vamos lá!

Ambientação

A história de O Coração é o Último a Morrer se passa nos Estados Unidos após uma grande crise econômica e social, a poucos anos no futuro. Os empregos estão escassos, quase inexistentes, ter uma casa virou luxo e o que comer no dia seguinte é sempre um mistério. A violência nas ruas cresce cada vez mais, com pessoas munidas com pesados armamentos até saltos de sapato.

Nesse contexto, Charmaine e Stan, o casal central da história, tornaram-se nômades e passaram a viver dentro de um carro velho, úmido e malcheiroso devido a falta de acesso a higiene. Stan havia sido demitido de seu emprego anterior, mas por sorte Charmaine conseguiu um trabalho em um bar que oferecia também serviços de prazer. Era com o pequeno salário dela que eles conseguiam comprar gasolina, alguma comida que pudessem encontrar e eventualmente um banheiro onde pudessem se lavar.

Sendo assim, você já consegue imaginar o cenário dessa sociedade falida e abandonada. Enquanto eu lia lembrei de outro livro com um contexto muito semelhante. A Parábola do Semeador (Semente da Terra Vol. 1), escrito por Octavia E. Butler, trabalha com a mesma premissa de uma sociedade vivendo em uma profunda crise econômica e social. A ambientação, o enredo, os questionamentos, o universo criado por Octavia são arrepiantes e impactantes.

No entanto, talvez tenha sido falha minha associar O Coração é o Último a Morrer com este livro, pois apesar de começaram em pontos semelhantes, eles diferem muito nas trajetórias percorridas. De qualquer forma, vamos analisar os pontos negativos e positivos da história criada por Margaret.

O Coração é o Último a Morrer
Imagem Divulgação: Suco de Mangá

 Habitação ou Prisão

Tendo em vista o contexto em que os personagens principais viviam, tendo que dormir no carro com o constante medo de serem assaltados, violentados ou mortos, é fácil de compreender o desespero para sair dessa situação.

Sendo assim, um dia Charmaine vê na TV do seu trabalho um anúncio de uma nova oportunidade de vida. As cidades gêmeas Consilience e Positron ofereciam moradia, trabalho, comida, segurança e estabilidade para aqueles que cumprissem com os requisitos. Empolgada com a ideia, a mulher convence o marido a se inscreverem para tal.

Então, chegando lá eles recebem uma explicação mais detalhada do projeto. Todos os escolhidos teriam casa, uma lambreta e um emprego, no entanto, deveriam viver em um sistema de rodízio. Passariam um mês vivendo como civis normais e livres na cidade de Consilience, e um mês como prisioneiros na prisão Positron. Enquanto estivessem na prisão, outras pessoas morariam na casa deles, os chamados Substitutos, da mesma forma que enquanto eles estivessem vivendo como civis em casa, os Substitutos estariam em Positron.

Além disso, todos teriam um armário próprio e uma lambreta, ambos da mesma cor para identificação, poderiam usar apenas os celulares disponibilizados pela organização do projeto e não poderiam ter qualquer contato com o mundo lá fora. E, é claro, seriam constantemente observados em todos os lugares.

É nessa realidade que Charmaine e Stan pensam ter encontrado a vida perfeita, mas por um momento de tentação e por um beijo fúcsia eles percebem o terrível erro que cometeram.

O Coração é o Último a Morrer
Imagem Divulgação: Suco de Mangá

A Donzela Inocente e o Turrão Insatisfeito

Uma vez apresentado o enredo para vocês, gostaria de falar mais um pouco sobre os personagens. Primeiramente, o casal central da história, Charmaine e Stan. Não é preciso ler o primeiro capítulo inteiro para perceber que a relação dos dois é problemática. Enquanto Charmaine usa da sua delicadeza e otimismo pra ver o melhor lado das situações, Stan é um grosso que vê a esposa como alguém inocente e quase incapaz de se virar sozinha.

No começo, parece que Charmaine o ama verdadeiramente e faz de tudo para manter o casamento vivo, exatamente o contrário de Stan. Foi interessante ver como Margareth lidou com essas primeiras impressões, conseguindo surpreender o leitor ao longo da narrativa.

Além deles, outros personagens interessantes nos são apresentados, como Jocelyn e Aurora. Principalmente se tratando de Jocelyn, são mulheres fortes e de certa forma poderosas. No entanto, não me agradou muito como ela foi descrita diversas vezes. Às vezes é difícil separar o autor da obra que ele escreve, então fiquei na dúvida se os comentários de cunho homofóbico faziam parte da construção de alguns personagens ou se não era esse o caso. Apesar de ter ficado incomodada, especialmente em relação aos pensamentos e atitudes de Stan, não foi algo que realmente prejudicou a leitura.

Um Ano numa Página, Um Minuto num Capítulo

Ok, talvez seja um pouco exagero falar que apenas um minuto se passou num capítulo inteiro, mas é pra ilustrar a sensação. Agora falarei um pouco das minhas impressões em relação à obra.

Como dito no começo desse Review, toda a ambientação e propaganda de O Coração é o Último a Morrer nos leva a crer que o livro será realmente sobre uma distopia, sobre problemas sociais, enfim. Contudo, a trama se transformou em algo meio novelesco, cheia (cheia mesmo) de traições e planos mirabolantes, e o universo criado ficou totalmente de lado.

É neste sentido que eu digo que não poderia tão rápido ter assimilado este livro com o Semente da Terra, pois fiquei um pouco desconcertada. Estava esperando um livro mais voltado para o macro, mas ele se concentrou no micro. O foco da história ficou totalmente nas relações conturbadas dos personagens e na tentativa de escapar daquela realidade. Sendo assim, o universo super instigante apresentado no começo foi esquecido.

Além disso, creio que Margaret se apressou em passagens que podiam ser mais exploradas e se alongou em momentos que poderiam (e às vezes deveriam) ser mais dinâmicos.

Por exemplo, o livro dá um salto da recepção que o casal teve em Consilience até um ano depois, com eles já dentro do projeto. Senti falta de uma ambientação maior, da adaptação, enfim. Enquanto que, no momento que Charmaine vai receber uma notícia que mudará sua vida, há uma página apenas dela divagando sobre cirurgias plásticas, fugindo totalmente do clima da situação.

Isso, creio eu, seja um estilo da própria Margaret, pois é algo que eu já comentei nos Reviews do O Conto da Aia e Os Testamentos. Portanto, sendo uma questão de estilo, também é uma questão de gosto. Mesmo que não tenha me agradado, não é necessariamente um defeito, apenas uma característica.

Outro ponto que eu gostaria de levantar, também já discutido nos outros Reviews, é que O Coração é o Último a Morrer não tem muitos desafios. Tudo sempre corre de acordo com o plano, os personagens conseguem exatamente o que querem, não há um momento no qual todo o plano vai por água’ baixo e eles precisam se desafiar para superar a situação. Apesar de ter esquemas e reviravoltas bem elaboradas, muitas coisas são previsíveis. De qualquer forma, é aquela coisa, não tem problema fazer um clichê desde que faça bem-feito.

Considerações Finais

Então, você chegou até aqui sedento pra saber se é um livro que vale a pena ler. Sem me prolongar muito mais, sim, vale a pena. Questões muito importantes como controle sobre o corpo da mulher, sexualização, pedofilia e domínio sobre a vida e a morte são levantadas em O Coração é o Último a Morrer.

Além disso, ele é perfeito pra quem gosta de uma boa “novela mexicana”, cheio de pequenos plot twists, conspirações, intrigas, traições e planos mirabolantes. Juntamente com humor e ironia muito bem-vindos para nos entreter.

Sobre o final, você deve tirar suas próprias conclusões. Quando eu terminei de ler a última página, literalmente revirei o livro pois tinha certeza de que faltava uma parte, um parágrafo, mais qualquer coisa, pois simplesmente não podia terminar ali. Inclusive, sobre o final, eu tenho uma série de críticas a fazer, mas quero poupá-los de spoilers e me conter para não me alongar muito mais do que já o fiz.

Finalizando esse Review, digo apenas uma coisa. Você com certeza conhece O Conto da Aia, o alcance que ele teve e os assuntos que aborda. Portanto, isso por si só já se torna um motivo pra conferir O Coração é o Último a Morrer, mais uma distopia saída da criativa mente de Margaret Atwood. Caso você não conheça, é uma ótima leitura para encarar um futuro sombrio que está a alguns passos de se tornar realidade. Então pega sua lambreta e explore a realidade perfeita e perversa de Consilience e Positron.

O Coração é o Último a Morrer
Imagem Divulgação: Suco de Mangá

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REVIEW
O Coração é o Último a Morrer
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Jaqueline
Um pouco avoada, a doida das teorias da conspiração e leitora compulsiva do Nome do Vento. Adoro escrever sobre aleatoriedades, observar a natureza e ser engraçadinha em momentos impróprios, afinal esse é meu jeito ninja de ser.
o-coracao-e-o-ultimo-a-morrer-reviewO projeto Positron parece um sonho realizado para Stan e Charmaine depois de tanto tempo sem ter onde viver, sem esperança e à mercê de criminosos. Porém, uma espiral bizarra de infidelidade, segredos e chantagens abala a aparente satisfação que o casal pensava ter encontrado em Consilience, um lugar em que os corretos são aprisionados e os sem-lei vagam em liberdade.