Cells At Work (ou Hataraku Saibou) pode ser considerado como uma das agradáveis surpresas de 2018!

Confira também nosso Primeiro Gole

Baseado no mangá de mesmo nome, escrito e ilustrado por Akane Shimizu, foi lançado como série de mangás na Monthly Shounen Sirius (do grupo Kodansha) em Março de 2015, licenciado pela Kodansha dos EUA e adaptado pela David Production na Temporada de Verão 2018, indo seu primeiro episódio ao ar no último 7 de julho.

Com 13 episódios produzidos até o momento, Cells at Work traz como universo de seu cenário o próprio corpo humano, representado como se fosse uma imensa cidade habitada por trilhões de habitantes (que chamam o corpo de “nosso mundo”), com inúmeros setores de controle representados como Departamentos da nossa sociedade…

Os melhores exemplos são os que mais chamam a atenção nessa primeira temporada – os “Correios”, que funcionam como entregadores, e a “Polícia”, protegendo a população… mas peraí: quem são os cidadãos do corpo humano?

Essa é a grande sacada do anime: os cidadãos, as pessoas dessa imensa cidade, são as células do nosso corpo! *mindblow*

HOW COOL IS THAT?

Sim, é isso mesmo! Cada célula é um cidadão com uma função bem específica, que trabalha num determinado setor do corpo – órgãos ou tecidos específicos – onde muitos, muitos outros também trabalham realizando suas funções… assim como as células do nosso corpo.

cells at work
Glóbulo Vermelho de Cells At Work, versão Chibi (Arte por Kyu Story)

Nesse sentido, o cenário é bem fiel às células reais: indivíduos que fazem funções semelhantes são realmente muito parecidos, usam uniformes iguais, e têm até mesmo características físicas semelhantes. E, ainda assim, esse é um lance que eu achei sensacional no cenário criado por Shimizu: apesar de tornar as células de mesma origem, função ou estágio de desenvolvimento “iguais”, ligadas a uma padronização necessária ao próprio funcionamento do corpo humano, o anime consegue criar uma personalidade única para cada célula, antropomorfizando (você quis dizer: dando forma humana?, by Google) completamente os personagens do cenário. Ao fazer isso, Shimizu torna-os passíveis de apelar para a nossa capacidade, tão humana, de nos identificar com os personagens de uma história, ao nos conectar com seus conflitos e anseios – como pede, afinal, qualquer boa história.

A personagem principal do anime é uma célula sanguínea novata, AE3803, que faz parte do sistema sanguíneo. AE3803 é um eritrócito (a.k.a. célula vermelha do sangue) que se perde o tempo todo pelas vias de acesso por onde circula (surpresa: os vasos sanguíneos), enquanto vai observando e interagindo com suas senpai (“veteranas”, numa tradução livre) e com outras células que circulam no sistema vascular, como as muito diversas células brancas do sangue. Mais que meramente interagir com essas células, AE3803 se engraça com uma delas, U-1146, um neutrófilo sério, incansável e corajoso, que aparentemente corresponde a seu interesse. Neutrófilos como U-1146 são células brancas, de defesa, das mais comuns e rápidas do nosso corpo, e que vasculham o sistema em busca de elementos estranhos – uma espécie de vigilante do corpo. Por isso, U-1146 tem um ar meio “sociopata” (#medo)… afinal sua função consiste de identificar e eliminar células estranhas invasoras, os germes – e por eliminar, entenda-se “destruir” (e, no caso do anime, isso significa matar sem economizar no sangue jorrando, como é típico dos animes – Dragão Shiryu que o diga!) ou, no caso de fagócitos reais como a maioria das células brancas do sangue, “devorar” – o que também é feito no anime por nosso herói U-1146. E sim, eu também achei meio bizarro ver criaturas antropomorfizadas matando e comendo monstros… yew. Anyway, acurado cientificamente.

Acurácia Científica

Falando em “acurácia científica” (você quis dizer: “é desse jeitinho aí mesmo?”, by Google), nada é perfeito, né… uma das falhas que encontrei – pequena, eu diria, mas uma falha – é o fato de que as células vermelhas do sangue, que são o serviço de “correio” do corpo, são transportadas pelo sistema de pressão dos vasos sanguíneos. Assim, o coração e as paredes dos vasos é que bombeiam o plasma (parte líquida do sangue) de forma a carregar os eritrócitos, leucócitos e tudo mais que o sangue transporta. No desenho, pelo menos até o 5º episódio, nenhuma menção é feita a essa fase líquida, e o transporte fica somente por conta da movimentação pessoal das células, de forma que elas vão aprendendo a ir sozinhas pra onde devem ir (com exceção, talvez, da nossa heroína AE3803, que está SEMPRE perdida por ser novata, verificando mapas e pedindo ajuda). Uma analogia mais exata talvez fosse algo como todos se transportarem por meio de um rio de plasma, quem sabe nadando… mas acho que a licença poética tolera bem essa imprecisão, e permite usar como referência aos líquidos do corpo outros elementos, como por exemplo enzimas e o suco gástrico (espere pra ver! rs).

Glóbulo Branco de Cells At Work
Glóbulo Branco de Cells At Work, versão Chibi (Arte por Kyu Story)

Apesar disso, tal liberdade ao ser tomada leva a coisas interessantes, como o fato de a desorientação constante da novata AE3803 nos permitir conhecer a existência e a função das válvulas (como eu disse, representadas por “portarias”), que não deixam o sangue seguir em determinadas direções ou adentrar locais indevidos – lembrando que na “vida real” todas as células vermelhas sanguíneas estão “perdidas”, encontrando seu caminho conforme o corpo as empurra de um lado pra outro, e entregando elementos específicos (oxigênio, nutrientes, remédios) conforme chegam a locais onde são necessários, e não seguindo um roteiro pré-estabelecido.

Falar dessa característica da acurácia me faz querer chamar a atenção pra outro aspecto muito legal, e que eu achei um dos pontos mais positivos do anime: a possibilidade de seu uso como ferramenta didática (nome floreado para “usar pra ensinar”). Além de representações interessantes, lúdicas e divertidas (o desenho é bem divertido, trazendo o humor meio “pastelão” típico das animações orientais), a cada aparição de uma célula, germe, enzima ou similar ao longo dos episódios, a cena é pausada e uma descrição textual entra junto com a narradora, informando o nome, a função e as relações daquele organismo com relação ao sistema em questão e às outras células. E não é só na primeira aparição… quando aspectos relevantes são destacados, a descrição muitas vezes volta, ajudando na memorização e na manutenção do conhecimento da audiência – além de tornar o anime acessível a deficientes auditivos. Achei sen-sa-cio-nal! Nota DEZ pra produtora!

Esperamos mais trabalhos deste tipo!

Ainda nesse sentido, vejo uma esperança de que os animes façam mais disso. Sendo essa modalidade de arte um verdadeiro fenômeno mundial, particularmente desde o fim dos anos 80, animes tem um incrível poder de penetração entre jovens, por permitir misturar linguagens e por ter um estilo próprio atraente, que mistura a comunicação verbal e não-verbal com riqueza, e que é bastante condizente com a vivência de crianças e adolescentes. Por isso, seria realmente mágico ver animes sendo usados para diversão e informação de estudantes, ajudando com sua ludicidade (a capacidade de ser lúdico, de ser tratado como jogo ou brincadeira – se ainda tá confuso, olha AQUI!) a estimular indiretamente o aprendizado através do uso de uma ferramenta que “simula” uma necessidade (exemplo: eu crio a necessidade de saber como funciona tal célula para satisfazer minha curiosidade sobre um evento do anime, e assim aprendo “por tabela”). Há muitos exemplos conhecidos: ontem, aprendemos um pouco de História com o Rurouni Kenshin (Samurai X), por exemplo, entendendo um pouco mais sobre o fim do xogunato Tokugawa no Japão e o início da Era Meiji, e mitologia com os inúmeros animes sobre mitologias de religiões diversas (Saint Seiya, Shurato e por aí vai)… hoje, aprendemos Biologia com Cells At Work… Quem sabe amanhã não veremos outros ensinando as famigeradas Física e Matemática? *_*

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Plaquetinha de Cells At Work, versão Chibi (Arte por Kyu Story)

Criatividade e Representatividade

Voltando ao anime, preciso mencionar a criatividade ao representar os patógenos (nome feio dos causadores de doenças): bactérias, fungos e outros parasitas são representados como… monstros! Sim, monstros! Veja você que analogia interessante… se uma célula do corpo é uma pessoa (gerando imediata identidade com a audiência), então o germe é um monstro, algo inumano, dissociando assim sua identidade da nossa, e justificando a resposta agressiva e imediata do corpo contra eles. Destaque especial para os vírus, agentes contaminantes que têm características dos seres vivos, mas que só sobrevivem se puderem parasitar seres vivos de fato – ou seja, as células! Os vírus são representados como agentes “possessores”, uma espécie de entidade que controla uma célula e a força a fazer o que ele, o possessor, quer, incluindo espalhar a possessão (basicamente como uma doença zumbi ou possessão demoníaca – ou seja, outro monstro!). Este comportamento está completamente de acordo com o que sabemos sobre vírus, pois como característica eles também têm o fato de utilizar a maquinaria celular (sim, o termo é esse: maquinaria – sistemas físico-químicos que regem a fisiologia celular) para se reproduzirem e se espalharem, em geral comprometendo e até condenando as células que possuem à morte. As reações alérgicas também não são esquecidas, e são mostradas pelo que são: provocadas por organismos inofensivos, mas incômodos por sua presença, e que geram reações muito confusas e às vezes exageradas e caóticas no organismo – veja o episódio 5! – o que de fato acontece conosco. Novamente, ponto pra produção!

As caracterizações de modo geral para as células, como dito, são sensacionais – engenheiros para os linfócitos B, que produzem anticorpos como munição das armas que usam para combater infecções; células de memória nerds que guardam os relatos e “lendas” sobre infecções antigas; as belas e poderosas células de macrófagos, grandes agentes de destruição e renovação celular e possuidoras de muita habilidade em destruir germes; soldados de elite como células T “assassinas” (killer cells), e todo tipo de alegoria ao representar as funções celulares… um deleite para os conhecedores e uma surpresa para os estudantes! É impossível também deixar de fazer menção especial às encantadoras plaquetas (estruturas do sangue responsáveis pelo reparo de danos estruturais no sistema vascular, evitando a perda de células sanguíneas pelo corpo por sangramentos), representadas por “células criança”, que trabalham coordenadamente, e de fato são um charme à parte do anime.

Penso ainda que alguns dos traços característicos da cultura oriental, como a valorização do esforço pessoal e da superação frente às dificuldades, também tem fator determinante no formato como uma ferramenta de aprendizado. Tais valores são arraigados na cultura e se refletem nos mangás e animes e, em minha opinião muito particular, são valores que podem e devem ser fomentados junto aos jovens, pois contribuem com seus processos de amadurecimento pessoal. Esses exemplos são apresentados de maneira clara e envolvente junto aos personagens, como um eosinófilo que sofre bullying mas se revela na verdade uma célula especializada contra parasitas ao confrontar sua insegurança, ou uma naive T cell (célula T “ingênua”, em tradução livre), que é uma célula T ainda a ser “amadurecida” (ou seja, exposta a um novo antígeno), que é incentivada por uma célula dendrítica de modo a se tornar uma célula T efetiva – ganhando força e coragem para suas tarefas.

Cells At Work (Arte por Kyu Story)
Cells At Work (Arte por Kyu Story)

Divertido, Instrutivo e bem elaborado!

Finalmente, a apresentação dos elementos do cenário não seria completa sem falar das construções e substâncias que não têm vida independente como as células. Estas estruturas são representadas por construções e materiais inanimados, mais uma vez numa excelente alegoria dos produtores. Outro must see é a ideia sensacional dos medicamentos serem robôs de guerra – afinal, fazem funções específicas pré-programadas, e vêm de “ninguém sabe onde” para resolver um problema – às vezes causando muito dano colateral ao fazê-lo, como de fato os remédios fazem em nosso organismo.

Enfim, Cells At Work é divertido, instrutivo, bem elaborado e curto… ou seja, vale a pena! A duração de aproximadamente 20 minutos por episódio é mais um atrativo, permitindo que até aquele curioso sem tempo se divirta aprendendo sobre como funciona seu próprio corpo.

Vale o gole! 😉

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Texto por JD Vollet

Arte por Kyu (Facebook, Instagram)