José Renato Fernandes
    José Renato Fernandes
    Um ser humano multifacetado: estudioso de Letras; analista literário de vídeo jogos; tradutor e intérprete; entusiasta de jogos de luta; batedor de cabeça em shows de metal; e materialista histórico dialético.

    EXPERIMENTE TAMBÉM

    Tomb Raider I-III Remastered Starring Lara Croft: o valor de relembrar o passado

    Pois bem, eu gostaria de utilizar minha posição como contribuidor do Suco de Mangá hoje para fazer uma espécie de resposta a um review que li. Ele era sobre os recentemente lançados remasters dos três primeiros jogos da série Tomb Raider, publicado por um site gringo. Então, não acho que vale a pena expor aqui seu autor ou o site em si. Porém, eu vou falar dele de qualquer maneira, pois fiquei bastante incomodado com a argumentação para justificar a negatividade entorno do lançamento.

    Antes mesmo de entrar nos pormenores de porque me incomodei com a argumentação deste review, será muito proveitoso explicitar algumas coisas.

    Primeiro, esta nova versão da clássica trilogia, desenvolvida pela Saber Interactive, teve envolvimento direto do modder XProger. Por sua vez, ele foi responsável pelo mod OpenLara, que além de permitir que as antigas versões do jogo rodassem em múltiplas plataformas, também adicionavam inúmeros efeitos visuais modernos na velha engine sem alterar excessivamente sua essência.

    O próprio modder, em post no Twitter, declarou que “este foi o projeto de seus sonhos, que foi a culminação dos últimos oito anos da minha vida”, agradecendo a oportunidade de liderar o projeto dada pela Saber.

    Então, vamos iniciar esta exploração partindo do pressuposto de que estamos lidando com o sonho de um fã, certo?

    Comentários sobre o review

    O review de que falo começa dizendo que a palavra “remaster” é ambígua o suficiente para significar qualquer coisa, desde um jogo velho com uma nova roupagem até um jogo reconstruído do início. Também, diz que no contexto deste lançamento, o termo deve ser definido como “gráficos atualizados, novos controles” e absolutamente nada mais. Ainda, fala que não faz nenhuma das duas coisas muito bem.

    Continuando sobre os aspectos gráficos, o review diz que este lançamento não é um remake. Na verdade, são os jogos clássicos “fazendo cosplay” de algo mais novo, com texturas de alta resolução, porém, ainda “feias” coladas por cima das texturas originais.

    Aqui já se nota o desgosto do escritor até mesmo pelos jogos originais, pois ele continua dizendo que estes já eram esquisitos em 1996. Também, fala que tudo que existia de errado com eles na época continua errado neste remaster. Por exemplo, que a câmera continua agindo sem muito controle do jogador e que as animações ainda fazem Lara parecer uma marionete.

    Contrapartida

    Eu consigo concordar que a parte gráfica dos Tomb Raider originais envelheceram bastante, considerando que estamos falando de jogos do início da era 3D.

    No entanto, falando não como alguém que precisa ser extremamente crítico sobre tudo que consome e sim como um jogador de 35 anos que viveu a época de controlar Lara em suas aventuras iniciais, eu diria que a escolha de não alterar drasticamente a direção de arte do jogo no remaster trabalha muito mais em seu favor do que contra.

    Os cinco primeiros jogos da série Tomb Raider, também lançados para Playstation, vêm de uma linhagem bastante peculiar. Eles são bastante inspirados em outra série antiga que amo, Prince of Persia (sobre a qual falei um pouco no nosso review de Prince of Persia: The Lost Crown).

    Assim como em Prince, Lara se locomove sob regras bastante restritas. Afinal, o mundo que ela habita é completamente feito de blocos quadrados, algo que é imediatamente perceptível por qualquer jogador que esteja com boa vontade de se mergulhar num jogo antigo.

    Então, a movimentação de Lara é regrada por estes blocos: se eu der um toque no meu direcional pra frente sem segurar o botão de andar, Lara irá correr por um quadrado de distância. Um pulo cobre dois quadrados de altura, e se ela pular para frente, um pulo saindo de uma posição em pé cobre dois quadrados de distância.

    Se eu der um toque para trás, Lara dá um pulinho para trás que cobre exatamente um quadrado de distância. Perfeito para correr esse um quadrado e dar um pulo correndo, cobrindo assim três quadrados de distância.

    Toda a jogabilidade destes jogos gira em torno desta premissa, até mesmo em Tomb Raider III, que introduziu novas habilidades que Lara era capaz. Então, imaginem o que seria necessário para atualizar todo o mundo do jogo para ter gráficos modernos SEM utilizar a movimentação “quadrada” original presente neles.

    Desta forma, eu olho para as imperfeições das texturas em Tomb Raider II e não vejo nenhuma “preguiça”. Na verrdade, vejo o cuidado de um fã atualizando os gráficos de um jogo que ama sem modificar a sua direção de arte. Esse cuidado é especialmente nítido se você apertar a tecla F1, que suavemente altera a apresentação do jogo para seus gráficos originais.

    Curioso, então, que este review escolhe reconhecer esta necessidade do mundo do jogo, mas simplesmente descartar a manutenção deste estilo como “inaceitável após três décadas de desenvolvimento de jogos”, como se o propósito de um lançamento como este não fosse a manutenção da história desta série.

    Porém, apenas como um exercício mental, vamos listar coisas que o remaster de Tomb Raider faz que, apesar de parecerem muito básicas em 2024, eram LITERALMENTE IMPOSSÍVEIS em 1996. Esta lista provavelmente estará incompleta, pois eu não manjo de todos os efeitos gráficos possíveis.

    O que notei na primeira sequência de níveis no Peru, no primeiro Tomb Raider:

    • No PC, os jogos rodam em taxas de frames até 120 FPS, os originais rodavam a 30 FPS. Inclusive, apertar F1 para trocar entre os modos gráficos fará a taxa de frames se travar em 30 para a experiência original;
    • Agora, Lara tem um mapa de sombra que reage dinamicamente à iluminação do ambiente. O original possuía apenas bolhas de sombra nos pés de Lara, que ainda existem para ajudar na precisão dos desafios de plataforma;
    • A neve caindo do teto na primeira fase não é mais composta de blocos pixelados numa resolução de 320×260, mas sim um efeito de partículas dinâmico;
    • Todos os efeitos que surgiram de forma arcaica em Tomb Raider III, como a fumaça saindo das armas de Lara e a água pingando dela quando ela sai da água, foram retroativamente adicionados aos jogos anteriores, e com muito maior resolução;
    • Em Lost Valley, você consegue ver poças de água no chão, e estas são realçadas por reflexos de mapas cúbicos, coisa que só foi ser possível em gráficos 3D dez anos depois;
    • Os ambientes podem refletir luz, tingindo Lara e seus inimigos com as cores dos ambientes ao seu redor. Por exemplo: numa sala vermelha em Tomb of Qualopec, Lara fica com um tom de vermelho iluminando seu modelo, aumentando o grau de imersão dos bonecos dentro do mundo;
    • Escadas que você pode subir agora não são mais só uma textura diferente na parede, elas têm um realce e sombreamento feito através de bump mapping, que só se tornou padrão em jogos a partir de 2006;
    • Fogo não é mais um sprite que fica alternando entre cinco frames de animação, e sim um efeito de partículas, muito bonito quando saído da boca do dragão em Tomb Raider II;
    • Agora dá pra saber o que é uma parede e uma janela, pois janelas têm reflexos!

    De fã para fã

    Assim, eu não sei vocês, mas eu particularmente não vejo “preguiça” ou tentativa de roubar dinheiro dos fãs de Tomb Raider com todas as atualizações feitas acima. Ao contrário, vejo um fã trabalhando para que a experiência desses jogos seja ainda mais rica.

    Estas foram acusações feitas por este review, argumentando também que “os jogos originais ainda estão disponíveis na Steam e na GOG por uma fração do preço desta coleção remasterizada.

    Sim, ele tem razão neste ponto. Você pode mesmo comprar as versões originais destes jogos, e eu acho que paguei 10 reais nos cinco jogos. Porém, fazê-los funcionar em versões modernas do Windows, com monitores modernos e em resoluções widescreen sem nenhum bug ou distorção é tarefa apenas para gente da minha idade, que tem experiência com hardware e software arcaicos e não se importa de jogar com controles de tanque, coisa que o review em questão despreza.

    “Controles modernos”

    De fato, o review também detesta a adição dos “controles modernos”. Eu não posso opinar a respeito do quão bem implementados estes novos controles são, uma vez que sou acostumado com controles de tanque e sei que o jogo foi feito com eles em mente.

    No entanto, concordo em partes que, de fato, o mundo do jogo não foi nem um pouco adaptado a controles modernos.

    Como Lara ainda segue os princípios de se mover com estes quadrados do mundo em mente, pequenas mexidas no controle para uma direção, que anteriormente fariam Lara girar em seu próprio eixo e ajustar levemente o corpo agora a fazem correr um quadrado na direção apertada, a não ser que você use o botão de andar.

    A decisão de colocar alguns dos movimentos vitais de Lara, como o andar de lado ou pular de lado, exclusivamente na posição com as armas ativas, realmente causa algumas situações hilárias. Por exemplo, o tutorial de Tomb Raider II que menciona um pulo de lado que literalmente não é possível nos controles modernos.

    No entanto, lembremos de duas coisas: primeiro, que estes controles modernos são feitos para quem joga num controle. Controles estes que já eram concessões para quem não estaria usando um teclado no Playstation lá em 99. De fato, estes jogos eram primariamente feitos para ser controlados por um teclado (nem dá pra usar mouse neles), e isto pode causar muita estranheza em quem não é velho como eu.

    Mesmo assim, não me considero um jogador tão habilidoso assim e não acho que estes controles antigos sejam impossíveis de aprender em 2024. Além disos, me diverti absurdamente usando os controles clássicos em meu teclado como se eu estivesse jogando em 1999.

    Segundo, que os controles originais em tanque usados para controlar Lara nos jogos originais ainda são perfeitamente viáveis, a não ser que você seja uma daquelas pessoas que dá graças a Deus que Resident Evil com câmera fixa não existe mais.

    Valorização dos remakes

    Neste review, o autor menciona que não conseguiu fazer a experiência de controlar Lara se tornar prazerosa de jeito nenhum, pois três décadas de jogos em terceira pessoa controlando “melhor” tinham tido um efeito nele.

    Então, aqui é onde realmente tenho um problema. Afinal, a argumentação parece partir de um ponto de vista de que “estes jogos não existem mais por um motivo”. O motivo claramente sendo “porque eram ruins”, e assim não vale a pena trazê-los para a modernidade. Nisto, não consigo concordar.

    Os remakes de Resident Evil 2 e 3 são, sim, ótimos jogos, mas não acho que eles substituem os clássicos, e sim os complementam. Afinal de contas, Resident Evil só é a gigantesca franquia que é hoje porque a câmera fixa e os controles de tanque de Resident Evil 2 causaram um efeito poderoso em muita gente lá em 1998.

    Estes clássicos merecem existir em 2024, co-habitando e convivendo com a modernidade, e há um risco que eles desapareçam. Por exemplo, sem emulação estes clássicos da série Resident Evil não estão disponíveis em lugar nenhum. E eu acho LINDO que os Tomb Raider não estão sofrendo o mesmo destino.

    Problematizações

    Por último, eu gostaria de debater com mais uma parte que argumenta em favor de desaparecer com os jogos antigos. Porém, desta vez, sob o ponto de vista de como eles podem ser problemáticos em quesitos étnicos, de gênero e de consciência de classe.

    No review, o autor reclama sobre uma das telas iniciais do jogo antes da tela título, onde os desenvolvedores adicionaram uma mensagem:

    Os jogos desta coleção contêm representações de povos e culturas enraizadas em preconceitos raciais e étnicos. Estes estereótipos são profundamente nocivos, indefensáveis, e não se alinham com nossos valores na empresa Crystal Dynamics. Ao invés de remover este conteúdo, nós escolhemos apresentá-los aqui em sua forma original, inalterada, na esperança de que possamos reconhecer seu impacto nocivo e aprender com ele.

    O review detona esta mensagem em particular, levando-a como um insulto pessoal. Como se a empresa estivesse querendo que os jogadores aprendessem uma lição que eles mesmos não estão dispostos a alterar, e como se a empresa estivesse agindo de maneira desonesta ao vender um produto inalterado como se fosse uma lição de sociologia.

    Agora, eu tenho certeza que a parte mais incriminatória destes jogos que provavelmente provocou a inclusão deste aviso é a sequência de níveis nas Ilhas Pacíficas em Tomb Raider III.

    Nele, Lara encontra uma tribo nativa da Polinésia que… ugh… são mostrados como canibais e atiram em Lara com zarabatanas envenenadas. É, certamente é um jogo dos anos 90.

    Eu não irei argumentar em favor de simplesmente fecharmos os olhos para este problema e não aprofundar uma discussão sobre estas problemáticas em jogos antigos. Até mesmo problematizaria o fato de que Lara dá uma gemidinha toda vez que sobe uma plataforma a partir do Tomb Raider II, claramente marcando estes jogos como “feitos para marmanjos”.

    Discussões necessárias

    Não há problema nenhum em discutir qualquer ponto problemático em qualquer um destes games. No entanto, eu gosto de alinhar-me com uma das grandes responsáveis pela popularização desta discussão nos games, Anita Sarkeesian: “é possível, e até mesmo necessário, simultaneamente desfrutar de mídias enquanto somos críticos sobre seus aspectos mais problemáticos ou perniciosos”.

    Considerando a filosofia claramente mostrada em como a equipe do remaster trabalhou suas mudanças gráficas e a implementação de controles modernos para adequar toda uma nova geração de jogadores, eu não acho que a mensagem do início vem de um lugar cínico. Ela vem de um lugar onde a manutenção da experiência que nós tivemos em 1996 vem em primeiro lugar e de um reconhecimento de que há aspectos problemáticos nestas obras.

    No entanto, alterar a tribo polinésia significaria, no mínimo, remover quatro níveis que existiam no Tomb Raider III original. Além disso, seria necessário reestruturar toda a narrativa do jogo e o ritmo dele para fazer sentido sem estes quatro níveis.

    Ou, se quisermos levar mais longe, seria necessária toda uma mudança do design dessas fases para remover estes inimigos étnicos ou alterá-los para estereótipos menos ofensivos. Em ambos os casos, o que teríamos não seria mais Tomb Raider III.

    Conclusão

    Eu realmente não gosto desses argumentos que trabalham com coisas antigas como se elas não tivessem valor algum porque os tempos mudaram.

    Não apenas nos jogos, a história nos mostra onde estivemos para que escolhamos aquilo que merece ser continuado e aperfeiçoado e aquilo que precisa ser descartado. Porém, não é apagando da história que os problemas mudaram, e arriscamos nos livrar de estilos de jogo, gêneros, controles e níveis inteiros que têm algo de valioso em seu DNA. Eu não consigo concordar com sua extinção.

    Ao meu ver, os remasters de Tomb Raider são extremamente valiosos e jogá-los nessas versões melhoradas em 2024 não tem preço.

    José Renato Fernandes
    José Renato Fernandes
    Um ser humano multifacetado: estudioso de Letras; analista literário de vídeo jogos; tradutor e intérprete; entusiasta de jogos de luta; batedor de cabeça em shows de metal; e materialista histórico dialético.

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