Quando pediram esses dias para definir 2020 em uma palavra, nem pestanejei: virtual. Virtual é a palavra que define este ano por uma série de razões. Com certeza que este o pior dos últimos 50 anos e não preciso repetir o que já está nos jornais todos os dias para dar prova disso.
É tentador definir 2020 em uma palavra como: desgraça, horror, luto, ansiedade e derivados, principalmente para aqueles de nós que sofreram diretamente com a mortalidade do momento. Mas é justamente a natureza desse momento ímpar de nossa história, onde países e pessoas sensatas se enclausuram em suas casas para se protegerem, que todas as necessidades do nosso cotidiano viram-se obrigadas a recorrerem ao virtual, na medida do possível e até do impossível.
Escolas e universidades começaram a dar aula, realizar provas, trabalhos e eventos online. E por falar em eventos, os grandes anúncios e torneios no mundo dos games também se voltaram ao virtual: nada daquele espetáculo de gente na E3 ou na EVO para 2020 (o caso da EVO é um escândalo horroroso à parte; nem no virtual rolou). É lógico que os supermercados não puderam ficar fechados, mas nunca que aplicativos de comidas ficaram tão movimentados quanto em 2020. Aliás, se existe um herói que figura ao lado de médicos e enfermeiros ao redor do mundo, estes são os entregadores, que passaram a trabalhar ainda mais, então aqui vai meu minha gratidão! Lojas e restaurantes físicos tiveram que se adaptar às vendas online do dia para a noite, estendendo a relação com os seus clientes no mundo virtual.
Se a balança do mundo pendeu com força para o virtual, quais as implicações disso para a assiduidade de tudo aquilo que já consumíamos com certa frequência na internet? Explodiu, evidentemente. O número de novos assinantes da Netflix superou as expectativas da empresa em milhões, o Brasil passou a usar internet numa frequência 50% maior do que em 2019, (o que rendeu vários problemas técnicos e reclamações dos serviços de internet) e nem o YouTube resistiu à alta do trafego e também caiu. Afinal de contas, além de ler livros, cuidar da casa e brincar com o cachorro/gato, que mais restou quando a única opção para a boa parte do ano passou a ser ficar em casa?
Nesse novo ritmo, tivemos mais olhos prestando atenção no que acontecia pela Internet, por mais tempo, repassando tudo aquilo que chamava a atenção em velocidades multiplicadas. Foi assim que estouraram vários fenômenos de 2020, como Fall Guys ou Among Us, que tiveram seu pico de fama e esfriaram em tempo recorde. Mas um destes fenômenos englobou tudo isso e deixou uma marca avassaladora na história do entretenimento.
Virtual Youtubers em Tempos de Streaming
O fenômeno das virtual youtubers em si não é algo novo, nem é a primeira, ou a segunda, menos ainda a terceira vez que toco nesse assunto aqui. Posso até estar correndo o risco de soar repetitivo, mas a verdade é que 2020 foi O ano em que este fenômeno se popularizou, se expandiu e se globalizou em proporções inéditas. Para que isso fosse possível, outras companhias adotaram outros modelos de programação que, como numa delicada receita de sobremesa, equilibraram coisas já existentes na internet para causar uma explosão de sabores na nossa experiência no mundo virtual.
Para entender isso, é preciso estender um pouco o que foi considerado em outras ocasiões. A verdade é que esse texto já queria ser escrito com esses pensamentos lá para os idos de maio a julho, mas como será possível de se notar, o mundo virtual veio se expandindo de novidades, notícias e acontecimentos, numa velocidade impossível de se acompanhar pela escrita, com o risco do que fosse escrito hoje já estivesse bastante obsoleto na semana seguinte. Só agora, com o ano próximo do fim e certo de que todos os trabalhos irão se desacelerar para as festividades de final de ano (que por mais trágico que tenha sido 2020, elas hão de acontecer, sem sobra de dúvida) é que me sinto um pouco mais seguro de botar no papel estas considerações sobre como e o porquê das vtubers terem explodido em popularidade hoje em dia.
Originalmente, o modelo de vídeos das primeiras grandes vtubers (como Kizuna AI, Kaguya Luna, Mirai Akari e Shiro-chan) era propriamente mais japonês: vídeos curtos, recheados de legendas customizadas como nos programas de tv japonesas, efeitos sonoros para dar expressão cômica às piadas soltas, só para definir por alto alguns pontos. Não é que esse modelo de audiovisual não seja engraçado, muito pelo contrário. Mas ele é nichado, sem a menor sombra de dúvida. A menos que 1) você seja japonês e familiarizado com as formas de produzir/apreciar o humor feito por lá ou 2) você seja aquele fã inveterado de cultura japonesa a ponto disso fazer parte do seu dia-a-dia (meu caso), é certo que, apesar do apelo da novidade em ver uma personagem de anime atuando no mundo virtual, a coisa toda ainda ficaria bem de nicho.
Como é bem fácil de ver hoje em dia, a primeira e maior diferença desse modelo de vídeo para o que domina hoje a esfera audiovisual das vtubers é o modelo de lives. Vale aqui dizer o óbvio, esse modelo já vinha sendo uma bomba inovadora para a aproximação e interação entre público x criador de conteúdo: não só no YouTube, como na Twitch, no Instagram, Facebook ou Twitter.
E os motivos dessa inovação são tão simples quanto profundos. Numa transmissão em tempo real, todas as partes envolvidas naquela programação compartilham da mesma percepção de tempo (e de espaço, nessa caso na esfera virtual). Isso é completamente diferente de você agir como um expectador passivo assistindo a um vídeo previamente filmado, editado, renderizado e que só bem depois é publicado. A espinha dorsal desse modelo agrega várias pessoas, antes afastadas por diferentes etapas na produção audiovisual, e as unem na mesma dimensão de tempo (o ao vivo) e espaço (a transmissão e o chat; o streamer e o público).
Isto entendido, é bem fácil imaginar o impacto dessa aproximação num público otaku que passa a ter a oportunidade inédita de interagir com uma personagem de anime. É bom lembrar: por trás de todo um vocabulário com expressões como waifu ou husbando ou tsundere, yandere, kuudere, deredere e derivadas, que costumamos tratar de modo brando (quando não debochado) há uma postura platônica por excelência, que, tal qual o filósofo grego (Platão), preza pela forma perfeita habitada no mundo das ideias. Para esse público, geralmente mais vale um avatar em 2D/3D encenando a personagem aparecendo na tela do que uma pessoa de cosplay encenando aquele tipo ideal o máximo que pode.
Para usarmos um exemplo assombroso: o recorde de visualizações e doações da ProjektMelody na sua estreia no Chaturbate em fevereiro, que indignou outras profissionais veteranas da mesma plataforma, é um caso cristalino que dá prova sólida de tudo que acabei de descrever acima. Apenas leiam a matéria, que resume muito bem a proporção da coisa.
Mais que uma aleatoriedade pertencente ao bizarro, isso é um sintoma das preferências de um nicho assíduo em espaços virtuais e que chega a valorizar o virtual sobre o real (as implicações disso são uma longa e enfadonha conversa que é coisa pra outro papo; sigamos em frente).
Mas verdade seja dita: sim, o sucesso do livestream é real e seu uso foi peça vital para a popularização das vtubers mundo afora. Mas nada disso era exatamente novidade. Um dos grupos pioneiros nesse espaço virtual e até hoje um dos mais famosos, o Nijisanji, já fazia lives desde seu começo em 2018, encabeçada principalmente pela vtuber Tsukino Mito, que já protagonizou esse anime aqui. Além dela, outras dezenas de vtubers do mesmo grupo espalhados por vários cantos da Ásia somavam horas e mais horas de livestream por um período considerável de tempo.
Pois bem, então voltamos à pergunta: por que em 2020? Falamos da situação anormal deste ano, falamos da principal mudança no formato de vídeos das vtubers. Falta aqui uma terceira coisa. Falta este isqueiro a ser aceso neste depósito de pólvora.
Falta falarmos sim, de Hololive.
Hololive e Meme Culture
Era um dia xx de outubro de 2019 quando uma raposinha decidiu gravar um curto cover de Scatman. Só voz, só a própria maluquice aleatória e ponto final. Alguns meses depois, o algoritmo do YouTube, em toda sua sagacidade de assustar aqueles que temem a revolta das máquinas, decidiu que aquela aleatoriedade de uma menina-raposa cantando Scatman com voz de garota de anime seria um conteúdo interessante para centenas de milhares de fãs de animes, memes e memes de animes.
Do mesmo jeito que um algoritmo notou que recomendar músicas japonesas dos anos 80 era uma boa ideia para fãs de cultura pop asiática e cultura pop dos anos 80, criando assim um revival num gênero musical que ficou conhecido como City Pop (termo que nem os próprios japoneses conhecem), o algoritmo pegou a faca e cortou o queijo: o vídeo recomendado explodiu em visualizações e de repente milhares se pegaram curiosos nessa raposa tão engraçadinha.
Foi assim que a vtuber Shirakami Fubuki virou uma das várias portas de entrada do grupo Hololive. E diferente das outras portas que surgiram desde 2017, esta não parou de atrair gente todo santo dia. Posso dizer com total segurança que Hololive foi o maior motivo dessa matéria ter ficado para o final do ano. Quando eu disse mais pra cima que as novidades de 2020 não paravam de acontecer e que tudo o que eu poderia escrever correria o risco de ficar obsoleto na semana seguinte, Hololive é talvez a maior razão disso.
Vamos tentar entender esse surto de popularidade com este vídeo bem bacana aqui, que mostra um gráfico de inscritos às membras do grupo desde sua formação em 2018:
Gráficos costumam ser chatos. E eles podem até ser mesmos, mas nada que um toque de mágica para dar dinâmica no negócio e deixá-lo mais interessante. Porque conforme as barrinhas vão se esticando, subindo e descendo no passar dos dias, das semanas e dos meses, a gente não tem como não sentir uma história de alcance sendo contada para os nossos olhos. O começo é humilde e aqui devo até um pedido de desculpas. Tokino Sora, a primeira idol do grupo, carregou a marca inteira nas costas, pavimentando o caminho para as garotas que viriam a seguir: Roboco-chan, seguida da Yozora Mel que, por fim, deu lugar à segunda geração propriamente dita em junho de 2018: Aki Rosenthal, Akai Haato, Natsuiro Matsuri e a própria Fubuki.
A partir desse momento, quando Fubuki estreou no canal, a gente vê como seu crescimento é rápido e ligeiro. Há algo aí de um talento para a coisa: seu modelo é fofo, sua personificação de uma menina-raposa é genuína e sua voz é de um carisma que não tem como ficar indiferente. A verdade disso tudo o próprio vídeo diz: em questão de poucos meses ela supera suas senpais; em novembro de 2019, um mês depois do meme de Scatman, ela supera Tokino Sora e se manteve como a vtuber com o maior número inscritos até novembro de 2020, quando Gawgura Gura alcançou o primeiro milhão do grupo em tempo recorde talvez de todo o YouTube.
Há outras coisas boas de serem notadas nesse gráfico: certos debuts estrearam como o lançamento de um foguete. Acabei de citar o caso da Gura, que em menos de dois meses alcançou um milhão de inscritos. Mas houveram pelo menos outros três abalos sísmicos nesse meio tempo: seus nomes são, Usada Pekora, Kiryu Coco e Inugami Korone. E é aqui onde enfatizo o que talvez foi a maior receita de sucesso da Cover Corp neste ano: o domínio da meme culture, a linguagem universal da internet.
Tá, isso foi um jeito mais frio de dizer que Hololive (e seus fãs) são um primor do shitpost. De qualquer maneira, pode até ser verdade que o elemento moe das vtubers, que a princípio se apresentam como idols, seja um apelo inicial para o público otaku. E daí? Idol por idol, Kizuna Ai e Tokino Sora são imagens perfeitas do estereótipo de uma idol. Mas todo mundo que embarcou nesse buraco viu rapidinho que Hololive tem haver com tudo, menos idols. O vídeo que acabei de linkar é um testemunho claro: YAGOO, presidente da Cover, saco de pancadas da zueira (e best girl) teve seu sonho de montar um “AKB48 virtual” estraçalhado, mas ganhou algo muito melhor em troca.
O Hololive foi se expandindo para outros ramos ao redor do mundo. Algumas tentativas deram mais certo do que outras. Tivemos uma parceria com a China, o HoloCN, que foi descontinuada após um grave escândalo que envolveu uma onda de ódio e cyberbulling a Kiryu Coco por fãs chineses ultrajados com a vtuber mostrando uma bandeira de Taiwan em sua live. A tentativa de conter os danos só piorou as coisas: na tentativa de amansar a ira dos fãs chineses suspendendo temporariamente as atividades da Coco (e da Akai Haato, que também mencionou a fanbase taiwanesa), a Corp atraiu pra si a ira de fãs ao redor do mundo inteiro, de Japão às Américas. Eventualmente as coisas se acertaram. A Cover escolheu a voz da maioria e encerrou o HoloCN.
Mas fora esse tropeço quase desastroso, as outras iniciativas para o exterior foram surpreendentemente bem sucedidas. O HoloID, baseado na Indonésia, trouxe para muita gente o primeiro contato com qualquer coisa sobre o país. O trio: Ayunda Risu, Hoshinova Moona e Airani Iofifteen pode até parecer modesto, mas só parece. Seu bom humor, a vocação para o shitpost (só procurem #RandoMoona no twitter…) e o talento para os idiomas (Iofi fala indonésio, inglês e japonês fluente!) as fazem tão especiais quanto suas senpais japonesas. Agora em dezembro, o HoloID recebeu mais um trio igualmente promissor: Kureiji Ollie (uma baita sucessora de Zombieland Saga), Anya Melfissa e Pavolia Reine.
Já o HoloEN trouxe vtubers que diminuíram bastante o tamanho dessa Torre de Babel que separa falantes de japonês de uma ponta e falantes de inglês de outra. E se no começo houvesse quem temia que vtubers ocidentais começassem a estregar a diversão agindo daquele jeito bem peculiar que faz a má fama de fãs ocidentais de cultura pop japonesa, exímios malas-sem-alça com dosagens exacerbantes de problematizol, esses medos tiveram pouca vida. Gawr Gura, Amelia Watson, Ninomae Ina’nis, Takanashi Kiara e Mori Calliope são talentosíssimas, autênticas e comprometidas com a proposta de entretenimento desse meio virtual. A resposta a esse trabalho duro está no apoio maciço pelos fãs em tempo recorde.
Todo esse sucesso e crescimento ao longo do ano mostram que o domínio da meme culture em tempos de streaming foi um marco divisor de águas nessa curta mas intensa história das virtual youtubers. Fórmula que está sendo muito bem apreendida e replicada com inúmeras novas vtubers que não param de debutar às centenas e ao redor do mundo.
Seja a Fubuki fazendo algum cover acapella ou com flautinha, ou a Pekora sendo burra (de “mentirinha”), ou a personalidade sem igual da Korone que atrai até a atenção de produtores de jogos, ou o inglês absolutamente motherf***er da Coco, os memes que saem a cada semana de alguma pérola solta por alguma vtuber deram prova de algo que virou tendência desde então nesse novo tipo de entretenimento que explodiu em 2020: a alma da coisa vinha dessa autenticidade aparentemente paradoxal; desses avatares virtuais que, se por um lado se apresentam na internet com uma faceta que não é a delas, por outro, essa faceta dá vazão a uma personalidade genuína, compartilhando risadas e até emoções.
E por que essa autenticidade ela só é aparentemente paradoxal? Porque no frigir dos ovos, a realidade dessa personalidade (que interage conosco, O Chat) tomando corpo num espaço compartilhado (o espaço virtual) dá plena autenticidade a todas essas personalidades online que rapidamente passamos a admirar, quando não amar, num sentido afetuoso, como quem ganhou mais um amigo ou entrou para uma família.
E é justamente falando sobre isso que quero chegar à última parte mais importante desse papo: autenticidade.
Uma Economia dos Afetos entre Calços e Percalços
Então este é o meu maior palpite: as vtubers acabam sendo autenticas, e por essa autenticidade são queridas, porque através de suas personalidades diariamente presentes e manifestas, esses avatares 2D, ainda que virtuais, tomam forma real no espaço virtualmente compartilhado (e vivido) da Internet.
Ficou difícil de entender isso né? Muito frase de humanas isso. Mas não tem problema se você não tiver entendido cada palavra. Você sempre pode ler e reler, devagar e com calma. O que interessa que você entenda, e eu acho que você consegue muito bem perceber por si mesmo, é que de algum modo essas meninas de anime são bem menos artificiais e bem mais genuínas do que muitos de nós esperávamos que elas fossem.
E se meu palpite sobre o que sustentou esse fenômeno de 2020 estiver correto (e eu acredito que esteja), ele explica muito bem o porquê da Kizuna Ai, pioneira inconteste desse movimento, ter tido um alcance tão murcho, tão humilde, do ano passado pra cá. O que era pra ter sido uma medida de segurança, acabou sendo um duro golpe na imagem de sua empresa original a activ8.
A triste história é essa: a Activ8 propôs um plano B, uma saída de emergência. A dubladora original de Kizuna Ai, famosa e requisitada, se ocupou cada vez mais com ensaios, gravações e demais atividades relacionadas à música e apresentações ao vivo. Isso estava se tornando difícil de conciliar com a regularidade de seus vídeos no canal do YouTube. A solução seria inventar uma segunda Kizuna Ai, que viraria depois a Number 2, Number 3 e Black Kizuna Ai. Só que até chegar a essa resolução, essa expansão foi recebida com um choque e certo estranhamento pelos fãs, porque de início era tudo Kizuna Ai, sem muita distinção. E era óbvio para os fãs que ela não era só aquilo que se mostrava em seu design, mas também era a voz que a personificava (ainda que atuando uma personagem). O sumiço temporário de Kasuga Nozomi, que veio a ser confirmada como a dubladora original, causou um tropeço bem nítido no alcance então insuperável da Oyabun das vtubers. Essa postagem no Twitter trás detalhes tim-tim por tim-tim.
De certa forma a história acabou com um final feliz. Depois de um tempo subindo vídeos em seu próprio canal no YouTube, como um jeito de ter o que fazer nos primeiros momentos mais críticos da pandemia, Kasuga Nozomi comprou os direitos de sua personagem e fundou a “Kizuna AI Co., Ltda.” em maio. Hoje em dia o canal tem mais o jeito de quando começou, mais do que nesse primeiro momento mais confuso que começou no ano passado. As clones receberam suas próprias personalidades, e agora só existe uma única Kizuna Ai. O pior foi evitado, mas o efeito da história é bem evidente em seu alcance mais modesto. O que não impede que a primogênita das vtubers continue trabalhando duro e adotando as novas tendências, como as lives e as colaborações com outras virtual youtubers.
É por isso que mais do que entregar entretenimento puro e simples, como um anime que lhe é apresentado já pronto e passa a ser escolha sua gostar dele ou não, autenticidade é A virtude-chave que move essa economia dos afetos. Existe uma economia aí em jogo. E não, não falo daquela economia de dinheiro, de finanças, apesar de redundar nisso no final das contas. Falo em economia no seu sentido mais puro, a norma do oikos, a norma do lar. O sucesso ou o fracasso de uma vtuber depende dessa economia balanceada entre o que a vtuber entrega e no quanto seu público lhe dá apoio em retorno. Claro que isso se traduz em superchats, em compra de merchans e membership de YouTube, mas mais do que isso, essa relação mantém uma casa de pé, manter um oikos, que é a palavra grega para lar.
E muitos encontraram um novo lar nesse espaço virtual, de ambas as pontas. Uma das minhas primeiras apostas quando concluí este texto no ano passado, era de que havia uma espécie de Etica da Elfolândia, como dizia G. K. Chesterton, onde essa nova comunidade de fãs mantinha um acordo implícito de embarcar na brincadeira. Não existe nenhum idiota aqui, todos sabemos que não se tratam de personalidades 100% idênticas às do seu dia-a-dia e as vtubers sabem, por sua vez, que existe algum grau de atuação que dá um sabor à experiência (como quando Gura conta uma história de quando esteve em um acampamento de peixinhos). O cumprimento desse acordo implícito virou uma viga forte que passou a sustentar esse lar e que proporcionou várias coisas.
Pessoas mais tímidas puderam vencer medos e ansiedades e se jogaram à Internet. A recepção de fãs fez com que as pessoas por trás desses avatares rasgassem pouco a pouco suas personas e de repente personagem e pessoa viraram uma coisa só. A comunidade de fãs, por sua vez, passou a sentir-se cada vez mais unida e integrada como quem passou a fazer parte de um grande relacionamento. “Relacionamento” aqui entre muitas aspas, porque é muito fácil acabar reduzindo isso tudo que estou dizendo a uma comparação com o filme “Ela” (2013), o que seria uma distorção um tanto míope.
É verdade que quando digo que existe uma economia dos afetos, afeto também pode ser lido num sentido amoroso. É verdade que pode até ser possível que existam fãs que extrapolem e percam a distinção entre o real e o fictício. E é verdade que existe larguíssima produção de um mercado dos afetos (que o Japão é mestre nesse tipo de conteúdo), com ASMR, áudios de bom dia/boa noite e demais comodidades que façam o seu público sentir-se mais íntimo de sua idol favorita (ainda que tudo isso seja um simulacro). Riscos à parte e admito que eu sou a última pessoa imune a estes, a comunidade que se formou e que se tornou parte vital dessa economia, faz questão de, em nome do bem-estar e da segurança de suas vtubers favoritas, manter uma postura sóbria e madura sobre como apreciar esse conteúdo.
Afinal, esse dia-a-dia é construído em calços e percalços. Como bem imaginei que aconteceria, por melhores que as intenções sejam, “do vergalho torto que é feita a humanidade, nenhuma coisa reta foi feita”, bem disse Immanuel Kant há séculos. Ainda mais quando essa “coisa” vira uma indústria que passa a envolver: money, dinheiros. Já houveram casos de abuso no trabalho, de assédio e de cyberbullyng que atravessaram esse nicho e isso só alerta ainda mais tanto empresas quanto fanbase a serem bem sérias sobre o bem-estar para que o espanto fantástico dessa Elfolândia não se perca na aridez que domina o mundo real.
Conclusão: É pra todo mundo
Depois de me estender e me estender sobre os porquês desse nicho ter estourado em 2020, acho que é bom concluir com uma notícia convidativa. Fato é que falei muito em “As vtubers”, em “As idols” e Os fãs, mas a verdade é que trata-se de um mundo bem mais universal, criativo e diverso (olha aí a palavrinha mágica de nossos dias!) do que se pensa de primeira. Na verdade, desde o estouro de Kizuna Ai em 2018, de lá pra cá o número de youtubers virtuais passou voando da casa das centenas e hoje já conta mais de oito mil (O que?! Mais de oito mil?!) pessoas, meninas, rapazes, homens, mulheres mascotes e animais, todos virtuais, todos à revelia de suas criatividades.
O que não falta nesse mundo é tipo mais diferente de gente. Já mencionei o Nijisanji, que diferente do Hololive, está bem menos preocupado em ser uma agência de idols do que ser um puxadinho online para vários personagens excêntricos saídos de um anime. É quase uma mesa de rpg em formato de vtuber. E foi nesse grupo que tive a primeira surpresa de ver uma vtuber como a Hana Macchia: falando em inglês, zuando com o chat e chamando a atenção até de Mick Gordon, sim, O Mick Gordon compositor de Doom Eternal. Outros grupos são menores, mais restritos ao público japonês e nem por isso menos adoráveis, como o Honeystrap e toda a galera do 774inc.. Dá pra dizer com segurança que passei a ser um tiquinho mais feliz e sorridente depois de conhecer a Saoinji Mary e seu espírito carinhosíssimo (está aí, revelei minha favorita).
E fora do mundo dos grupos e das agências, temos várias, várias e várias iniciativas independentes, que tentam sozinhas e com o próprio suor fazer acontecer o seu próprio canal. Foi assim com a Suisei antes de ir para o Hololive e é assim para a Sakura Tamamo. Ela está longe de ser famosa, tem uma presença modesta, mas sabe a melhor parte disso tudo? É que quanto menor o canal, mais a presença de cada um é apreciada. Quem já tentou fazer um canal, lançar vídeo ou transmitir live do zero sabe do que estou falando. Tamamo é apenas minha indicação porque sou um fissurado por kimonos, mas tente você também encontrar seu vtuber independente do canto do mundo que melhor lhe agradar e dê seu apoio!
Por último, é verdade que há uma enorme muralha linguística que separa todos nós. O inglês é uma língua franca mundial e foi capaz de unir pessoas do mundo inteiro, mas não todas. No Japão, inglês é tão difícil quanto japonês o é para nós, então o esforço de quebrar a barreira linguística acaba partindo tanto das vtubers (que estudam e praticam o inglês e o japonês o máximo que podem) quanto de parte de nós, fãs, que traduzem e divulgam trechos de lives de suas personalidades favoritas aos montes, todo santo dia. Porque eles sabem que quanto mais gente melhor. E como a Natsuiro Matsuri disse tão bem, nunca se sabe quando uma vtuber pode acabar se graduando, então é sempre importante aproveitar cada momento possível.
E para nós brasileiros, que ficamos dependentes só do português, pode ser um pouco desanimador ter pouca coisa em português se comparado com a montanha de coisa em inglês. Mas levante a cabeça, esse conteúdo existe! Tem bons canais de tradutores por aí (e esses tradutores foram importantíssimos para trazer a popularidade das vtubers para o globo, sendo reconhecidos por elas próprias) e temos até vtubers japonesas que estão de olho no Brasil! Tem gente como a Ayapan, a Jajami e a Kirara Mimi que se esforçam pra se comunicar em português, linguazinha desgraça de difícil! Ouço falar até que tem gente mesmo no Brasil começando a estrear como vtubers… disso não sei falar, mas pode ser uma boa dar uma olhadinha nisso aqui.
Quem sabe? Será que o negócio dá certo em terra brasillis? Que acham?
O convite termina aqui. É meio estranho colocar esse assunto nos holofotes do ano de 2020, um ano que dificilmente pode ser dito que teve algo de bom. Parece até desrespeitoso dizer que eu tenha gostado de viver essa popularização das vtubers, porque fora das telas do computador, a vida não foi fácil pra nenhum de nós. Os dias foram mais difíceis, as decepções foram várias, o sentimento de tragédia e de luto encobriu pais, mães, filhos e netos. E ainda assim, que reconfortante foi ver que tivemos tanta gente, nesse mesmo mundo e nesse mesmo ano sofrido que o nosso, empenhada em se conectar com as pessoas, ser um momento de alegria e trazer sorrisos e gargalhadas nos rostos de centenas de milhares de pessoas!
Por isso que essa matéria não é só um turbilhão de reflexões curiosas digitadas ao relevo. Ela é uma expressão genuína de gratidão. Aquela missão láááá de 2017, de conectar as pessoas, continua sendo graciosamente bem cumprida no final das contas. 2020 foi sem dúvida um ano penoso; mas poderia ter sido bem mais amargo sem essas pessoas tão dedicadas e maravilhosas, então meu muitíssimo obrigado!
EXTRA: Quando eu digo que as coisas nesse mundo acontecem muito rápido e a todo o momento, eu não estou de brincadeira. Olha aí a Kotonoha de School Days virando vtuber na véspera de Natal. Ninguém esperava por essa (nem a gente, nem o Makoto).