O último show ao vivo de Kizuna Ai antes de sua hibernação no dia 26/02 foi um marco em uma história que completará em breve seis anos. Parece pouca coisa, mas em termos de internet, um mundo de coisas pode acontecer. E aconteceu. Passou-se um tempo no limbo, numa bolha minúscula onde só quem é muito cracudo por cultura pop japonesa se enfiaria; são os anos das Big Four, Noja Rori, Mirai Akari, Shiro e Kaguya Luna, seguidas da “oyabun” Kizuna Ai.

bigfour
Da esquerda para a direita, Shiro, Kaguya Luna, Kizuna Ai, Mirai Akari e Noja Rori.

Já tem um tempinho que gostaria de fazer um balanço sobre o que mudou principalmente de lá para cá. As expectativas para o mundo vtuber eram algumas, circunstâncias vieram e agora a cena vive outras expectativas. Lives sequer eram algo quando isso tudo começou e mesmo quando o Nijisanji começou com esta proposta, mal chamavam a si de vtubers, mas de “virtual livers”.

Graças a um programador aparentemente ativo na cena, chokudai, ganhei o empurrãozinho de que precisava. Num fio bem, mas beeeeeem longo no Twitter (o que para nós é uma terça-feira tediosa, mas no Japão não é lá coisa que se veja todo santo dia), chokudai expôs suas expectativas e suas frustrações na cena. Abaixo deixo uma tradução do fio principal. O resto são esclarecimentos, mas para resumir: chokudai acredita que uma associação imediata entre um personagem e a voz que o dubla diminui o potencial inicial do vtuber para “uma nova forma de criar personagens”.

A pá de cal para que o artigo pudesse ver a luz do dia foi este vídeo interessantíssimo feito pelo Depressed Nousagi contando em detalhes sobre o drama envolvendo a pioneira Kizuna Ai em 2019, que afetou consideravelmente sua carreira e a deixou na retaguarda da cena global das vtubers. O percurso dela, afinal, é incontornável ao ponderar a mudança desta indústria desde quando ela surgiu em 2017.

Comecemos primeiro com o que disse chokudai em seu fio. Redundante dizer, mas não necessariamente podemos concordar 100% com o que é dito aqui, mas são pensamentos interessantes que merecem um espacinho aqui. Sem mais delongas:

RELATO: EXPECTATIVAS VS REALIDADE

Chokudai

Olhando as várias coisas à volta sobre Vtuber, sinto que o Vtuber como “uma nova forma de criar personagens num espaço virtual, que era o que se sonhava à época da estreia de Kizuna Ai, virou uma ideia morta. Hoje em dia Vtuber = uma imagem que se mexe e faz lives, mas nem sempre foi assim.

Muitas das primeiras vtubers tinham estilo em vídeo, então podia se dizer que a direção do personagem era decidida pela equipe administrativa. É claro, não podemos dizer com certeza quem é que decide o que será dito, se é a pessoa que escreve o roteiro ou a pessoa que dá a voz. Por isso as pessoas das vozes não são as mesmas.

Por exemplo, Nekomiya Hinata, que esteve na ativa desde o começo de tudo, era ativa como uma “vtuber proplayer de FPS”, mas provavelmente a “voz” e a “proplayer” eram pessoas diferentes. No entanto, são ambos os elementos que definem a personagem “Nekomiya Hinata”. E, críticas à parte, muitas pessoas citam as gameplays da Hinata como um evento decisivo para o nascimento do Nijisanji; e a influência do Nijisanji, que transformou a cultura Vtuber, é gigantesca. Ela passou da produção de vídeo com captura em 3D para lives com imagens móveis em 2D.

Mas acho que esse fluxo era algo inevitável. É simples.

Particularmente, eu estava acompanhando o, agora inexistente, Game Club Project. Eles eram bons em jogos, mas não se sentiam muito confortáveis fazendo lives. Criavam histórias em vídeo e colocavam as vozes por cima de vídeos de gameplay, criando uma espécie de vídeo-comentário. Quanto ao jeito de criar novos personagens, creio que o Gamebu levou essa fórmula ao limite e a sua empresa acabou se queimando por causa de problemas trabalhistas com seus dubladores. No fim das contas, todos mudaram de dubladores, mas acho, pessoalmente, que essa é uma das razões para se ter criado o fluxo de “dubladores diferentes são pessoas diferentes”.

De forma parecida, a Kizuna Ai também se dividiu em quatro pessoas e as coisas pegaram mal, mesmo já sendo uma vtuber com diferentes personas desde bem antes. Passou-se a dizer que “quando a voz muda, outra pessoa é criada” e a pessoa de dentro era chamada de “alma”… a partir daí o vtuber como uma “nova forma de personagem” morreu e isso passou a ser um “streamer com imagens móveis”. É claro que existe valor e demanda por “streamers com imagens móveis” e é por isso que Hololive e Nijisanji continuam a crescer, mas pessoalmente, não era bem isso o que eu desejava…

Afinal, quando se põe “personagens 3D ou 2D que se movem e fazem vídeo/live” tudo no mesmo saco e chama isso tudo de vtuber, cria-se naturalmente um ambiente que identifica no automático um personagem com sua voz. E acho que isso hoje dificulta a criação de novos personagens mais do que quando a Kizuna Ai surgiu. Uma pena.

COMENTÁRIO

Algumas notas serão úteis aqui. Primeiro porque traduzir linhas inteiras do japonês para nossa língua é um suplício, uma vez que a estrutura das duas línguas, quando cruzadas, formam uma verdadeira cama-de-gato.

Comparação da estrutura de duas frases, uma em japonês, outra em inglês, por Nick Kapur

O que essa imagem acima quer dizer afinal? Quer dizer, basicamente, que na cabeça de um tradutor, o cérebro anda em duas direções, uma está lendo, outra está tentando deixar aquilo entendível na sua própria língua. Ou seja:

“Tradução é minha paixão”

Não só é preciso dar uma pincelada no que chokudai tentou expor em linhas gerais, como é preciso dar alguns contextos para quem acabou de conhecer o mundo das vtubers para poder entender qual foi o seu ponto. Em resumo, para chokudai, o vtuber era uma produção, não uma pessoa. As personagens virtuais passaram a serem pessoas próprias a partir do momento em que “streamers virtuais” passaram a ser sinônimo de “vtuber”. Quando antes, havia uma equipe para criar algo a mais. Para isso ele usou o exemplo da Nekomiya Hinata, que ficou famosa como uma “vtuber pro-player de jogos FPS”. A criação dessa personagem envolvia uma equipe que roteirizava os vídeos, editava, gravava a gameplay e por fim uma dubladora para dar vida a personagem. A voz não era essência da personagem, mas parte do todo que a compõe.

Hinata mandando bala em Apex no vídeo mais visto em seu canal até então

A ideia procede, afinal mangás e animes obedecem ao mesmo processo. Mas a crítica subestima o quanto uma voz consegue ficar tão atrelada num personagem, a ponto deles facilmente se tornarem um só. Afinal, dificilmente alguém ouve a voz do Takehito Koyasu e não consegue visualizar o Dio na cabeça. Ou para ficarmos num caso ainda mais extremo e emblemático: o dublador de Jigen em Lupin III, Kiyoshi Kobayashi, com certeza eternizou o personagem na sua voz durante mais de meio século!

Kiyoshi Kobayashi e Jigen: 50 anos de parceria desde 1971

Disso incorre outro problema, muito preocupante e que pode ser (como já foi) desastroso, que é o risco de abusos a partes de equipes quando elas são muito minimizadas. Esse risco jamais será zero, infelizmente, mas o caso do Game Club Project mostrou o quanto um projeto altamente promissor pode ir abaixo quando você minimiza o papel de seus talentos. A situação já começou sendo a das piores, com denúncias de assédio moral, pagamentos atrasados e ingerência; quando a empresa responsável pelo grupo trocou um de seus dubladores, a debandada de inscritos foi brutal. O grupo nunca mais se recuperou desde então e o que foi uma das melhores produções de esquetes desse meio hoje sobrevive como lembrança na mente de quem pôde acompanhar enquanto durou.

O saudoso Gamebu, composto por Kaede, Ryo, Miria e Haruto

Quem escapou por um triz do mesmo destino foi a própria Kizuna Ai, e é aí onde o rico vídeo do Depressed Nousagi entra. Seu caso foi escandaloso. A divisão da vtuber em diferentes clones dentro e até fora do Japão (como na China) rendeu um tremendo mal-estar na comunidade, pelo medo da voz original da Kizuna Ai ser substituída pelos seus clones, fazendo com o que seu avatar se tornasse uma marca. O vídeo mostra a queda vertiginosa do alcance da Kizuna Ai no exterior, queda da qual até hoje ela ainda não se recuperou. O pior chegou a ser evitado, pois ela ainda é a maior referência na Ásia, mas as consequências negativas tanto para Kizuna Ai quanto para a empresa activ8 mostram que não é tão simples desassociar um personagem de sua voz.

O trecho em vermelho mostra a queda de inscrições e visualizações do canal de Kizuna Ai durante o escândalo causado pelas clones

Mas feitas essas ressalvas, agora a gente chega às concordâncias com chokudai. Não se trata de “papo de tiozão” ou de nostalgia desmedida. O próprio fez questão de reiterar que não desmerece as streamers e o seu sucesso. Trata-se de um ponto que faz sentido: a era das streamers afunilou as possibilidades criativas do mundo vtuber. E dá para entender, por um lado, que no caso da Kizuna Ai, seus clones fariam todo o sentido e contribuiriam para a história da personagem, que é uma personagem que quer se conectar com o resto do mundo. É bastante provável que é a esse tipo de criatividade desperdiçada que chokudai se referia.

A IDOLIZAÇÃO DA CENA E SEU POSSÍVEIS FUTUROS

Seria correto afirmar que a traição das expectativas do programador não são tão surpreendentes assim. Parecia-lhe que o fenômeno vtuber seria a oportunidade de uma expansão em larga escala de interpretação de personagens, como se o YouTube se transformasse numa imensa mesa de RPG. Claro, o princípio é válido e nunca deixou de haver algum grau de personificação em toda a cena, seja na Ásia ou no Ocidente, em maior ou menor grau. Mas o que vingou, no final das contas, foi a cultura idol; e é de se surpreender, quando a própria pioneira da cena é ela própria uma fofa e atraente garota de anime? Ainda que tenhamos tido toda sorte de criaturas fantásticas como gorilas afinadíssimos, amendoins de fralda e homens-cavalo fazendo o desafio do Neymar, a cultura na qual o vtuber foi criado é rodeada e sustentada pelo moe e pelo afeto virtual. O simulacro de afeto antes proporcionado pelos jogos eroge, pelas páginas de um mangá ou pelos frames de um anime, agora ganha um nível além de imersão, com uma waifu dizendo que te ama em tempo real, ainda que por alguns minutos.

A situação tem nome e CPF: Girlfriend Experience, ou apenas GFE; ou seja, dar a alguém uma experiência simulada de ter uma namorada. A prática já antecede e muito a existências das vtubers e ela existe tanto para homens quanto para mulheres. E seus efeitos nocivos foram bem visíveis principalmente depois de fevereiro, depois da repercussão negativa do caso de Rushia, tanto para si quanto para seus fãs emocionalmente hiperafetados com um rumor de namoro.

Na raiz do GFE está a necessidade de abater a própria solidão, adotando um carinho virtual, que na verdade não passa de um simulacro, mas que é mantido mesmo assim como uma muleta emocional até às últimas consequências. Desnecessário dizer, mas é mil vezes melhor evitar esse tipo de alternativa e aceitar as próprias condições, por mais deprimentes que sejam. Assistir um anime como Welcome to NHK é terapêutico nesse sentido, para que nossas interações com as mídias que desfrutamos continuem saudáveis.

Usos perigosos de afeto virtual à parte, o futuro da mídia é esperançoso. Se existe um lugar que ainda atende às expectativas de chokudai e que mantém o foco do vtube como um lugar de criação e exploração de ideias e personagens, esse lugar é o Nijisanji. A agência está aí desde os primórdios da cena e, apesar do seu foco pioneiro em lives (desse caminho dificilmente se desviará daqui pra frente), o Nijisanji vem brilhando no seu desvio da cultura idol e na sua prioridade pelo entretenimento, ultrapassando as barreiras do nonsense e criando entre os fãs o bordão, “This is Nijisanji”.

O foguete despontou de vez com a criação do NijiEN, mais especificamente o Luxiem; um grupo de rapazes vtubers que atendeu impecavelmente a uma demanda por presença masculina na cena anglófona. Vox Akuma e Mysta Rias, mas principalmente Akuma, conseguiram forte alcance e adesão de fãs pelo mundo inteiro pela autenticidade do bom humor visível em suas lives com os colegas dos grupos Ethyria, Obsydia e Noctyx.

Por fim, vemos que por mais que o futuro da cena vtuber possa ficar confinado à transmissão de lives com personagens animados em live-2D, as coisas não deverão ficar necessariamente monótonas. O uso e o reuso de traços, piadas e estereótipos da cultura pop podem sem sombra de dúvida gerar algo genuíno e cativante para o público, como é o caso da estrela meteórica recém-criada do estilo de personagem “ojou-sama” ou “himedere”, que é a Hyakumantenbara Salome.

A princesa de sobrenome complicado acima debutou no dia 24 de maio e em pouco tempo ela provou que a última coisa que esta mídia está é saturada, alcançando dezenas de milhares de pessoas em questão de horas. O estereótipo de ojou-sama, que termina todas as frases em “desuwa”, muito em uso nos anos 90 e esfriado bastante desde então, retornou numa vtuber que maneja muito bem os trejeitos de sua personagem e no uso do humor nonsense, inovando no método utilizado para que os seus fãs a conheçam “com mais profundidade”.

“Profundidade” no caso, ao expor o seu “eu interior” com imagens da própria colonoscopia, para ao qual um total de zero pessoas estavam preparadas. Foi provado nesse debut que espaço para surpresa sempre haverá.

CONCLUSÃO

Como é possível ver, as mudanças da cena vtuber não deixam de ser um fruto daquilo que Kizuna Ai semeou e envisionou desce o seu debut. Estamos diante de uma mídia que sem sombra de dúvida ampliou o alcance e a conexão entre pessoas ao redor do mundo, sejam elas streamers ou fãs. É verdade que as coisas eventualmente podem sair do controle por causa de um uso dúbio do fator afetivo para gerar uma dependência emocional danosa, quando não perigosa. Mas mantidas as devidas prioridades, o entretenimento e os usos criativos desse tipo de mídia continuam com um potencial enorme de crescimento, ainda que, para o bem ou para o mal, sua forma de expressão tenha ficado restrita (mas não exclusiva) ao uso de lives.