A espiritualidade japonesa é sem dúvida bem popular entre os fãs do esotérico e até mesmo da cultura pop japonesa. Ela é tão apreciada quanto estereotipada, é verdade. E a culpa é de quem? Não dá pra termos culpados. O budismo e o xintoísmo aparecem demais e são explicados de menos, então não é de admirar que existam imprecisões sobre a natureza dessas formas de espiritualidade. Aliás, não se surpreendam: até mesmo entre os japoneses esses conhecimentos tão ricos são cada vez mais ignorados e postos pra escanteio.

Essa última frase não vem de mim, mas de Reiko Okano ao fechar seu painel no Café Literário. A mangaká e esposa de Makoto Tezuka fez uma exposição belíssima de suas obras para além do anunciado Onmyoji, falando também sobre mangás que aprofundam o caminho monástico dos budistas, a forma e a elegância do feminino e o mundo dos lutadores de sumô.

Começando com Fancy Dance, o mangá conta a vida de um jovem que aproveitou bem sua juventude na moda dos anos 80, até o momento que decide largar a vida mundana e ser um monge.

Fancy Dance conta curiosidades das vestimentas, sutras e hábitos dentro do monastério, com uma semelhança aos quadrinhos antigos da Marvel que detalhavam, por exemplo, as partes da armadura do Homem de Ferro. A minúcia é valiosa, pois cada item da vestimenta tem o seu significado e sua razão de ser no hábito monástico.

E como não poderia deixar de ser, o mangá não é apenas descritivo. Ele também explora a recepção e a reação desse protagonista às tribulações e os desafios que vem testar sua disciplina. Às vezes com bom humor, com os castigos à indisciplina, às vezes até com crises existenciais, que deixam o protagonista se perguntando o que o torna diferente no meio de todas aquelas cabeças raspadas.

Em seguida, Reiko Okano apresentou à plateia o mangá Ryogoku Oshare Rikishi. O título é complicado, eu sei, então vamos explica-lo, pois vale muito a pena. Rikishi é simplesmente o nome dado a um lutador profissional de sumô. Oshare quer dizer moda, pois como Reiko Okano mostra bem, o sumô é um esporte popular no Japão e antiga à própria noção atual de esporte, remontando a rituais de purificação do ambiente. Essa popularidade leva homens às competições de força, jornalistas às coberturas esportivas e mulheres, pasmem, à admiração e aproximação dos melhores atletas. Sim, no mangá a autora introduz uma “Maria Chuteira” do sumô, ou uma “Maria Rikishi”, ou “Maria Tanguinha” ou sei lá, o nome que vocês acharem melhor.

reiko okano bienal do livro 2019
Reiko Okano apresenta à plateia o enorme mangá Ryogoku Oshare Rikishi, com um papel, segundo ela, “macio como apalpar um gordinho”

E Ryogoku? Essa é a parte mais interessante: Ryogoku é um distrito de Tokyo, considerado a meca do sumô. Ele é lar do estádio Kokugikan, que recebe três dos seis torneios anuais de sumô que existem. E o site Time Out não brinca ao vender seu peixe: na página sobre Ryogoku, você vê o templo que recebeu os primeiros torneios de sumô antes do estádio, um museu dedicado a Hokusai (o próprio autor das Ondas de Kannagawa e criador do termo mangá) e restaurantes que fazem as refeições dos rikishi, o chanko nabe. Afinal, não é só ficar gordo, comer umas porcarias e pronto. O prato que compõe a dieta principal dos lutadores de sumô é um sopão com uma mistura interessante de vegetais, cogumelos, carne e almôndegas de peixe. A diferença corporal é nítida dos lutadores que seguem essa dieta dos lutadores mais ocidentais que simplesmente resolveram engordar de qualquer jeito. Nessa luta icônica com Byamba, tetracampeão mundial de sumô, a diferença corporal dá prova óbvia do que digo.

Então, com essa exposição, é possível traduzir Ryogoku Oshare Rikishi como “Os populares lutadores de sumô de Ryogoku”. Reiko Okano começou a fazer o mangá por uma curiosidade cômica: como seria desenhar um mangá onde lutadores imensos ocupariam com facilidade um painel inteiro sozinhos e que mal usam roupas? Mas mesmo que no começo a intenção tenha sido meio brincalhona, o mangá amadureceu num nível que se tornou um versão seinen e mais pé-no-chão de Hinomaru Sumo.

A terceira obra que Reiko Okano apresentou foi Inanna. O título é uma inspiração óbvia da deusa homônima da mesopotâmia. Fãs da série Fate, principalmente os jogadores de Fate Grand Order, podem lembrar com mais facilidade que Inanna é um dos nomes de Ishtar, deusa do amor, da fertilidade e da guerra. Ishtar essa que estará no anime de Fate com previsão de estreia para outubro.

Inanna é a única obra da autora em exposição na Bienal, no estande do Consulado do Japão. O que podemos perceber é uma semelhança com um livro de rascunhos, com traços leves e lotados de formas femininas em inúmeras poses. É como se Reiko Okano tivesse espelhado em si mesmas as formas e as poses para os desenhos de suas dançarinas, já que a mesma disse ter praticado dança do ventre para imergir naquilo que ela queria criar. Aliás, essa informação fez encaixar todas as peças visíveis, já que a elegância da mangaká em muito se parece com a elegância de uma dançarina do ventre, como sua postura e o jeito como ela prende seus longuíssimos cabelos. É algo que você testemunha em pouquíssimas.

Por último foi falado do magnum opus de Reiko Okano, Onmyoji. Se em Fancy Dance o zen-budismo é o tema principal, em Onmyoji, uma faceta tão rica quanto e ainda mais original da espiritualidade japonesa é apresentada: o onmyoudou. Seu personagem principal é Abe no Seimei, sacerdote e conselheiro imperial que viveu entre os séculos 10 e 11. Sua existência é certa, mas sua vida é motivo de contos e lendas desde o século 12, com o compilado Konjaku Monogatarishu.

Para o pessoal que vê Demon Slayer (Kimetsu no Yaiba) e pirou no episódio 19, essa roupa lembra muito o pai de alguém, não?

Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma obra bastante espiritualizada. O onmyoudou, sendo uma forma de geomancia baseada nos cinco elementos, é uma espiritualidade muito ligada à organização espacial. Reiko Okano falou sobre templos, suas localizações e a construção das cidades imperiais, baseadas na organização do pentagrama, ou o “Seiman”.

Além da dimensão espacial, a música é um item muito importante para a autora. Ela prestou homenagem a um recém mestre do fue, uma pequena flauta japonesa, apresentando um áudio para a plateia. A mesma coisa para o koto, aquela harpa de mesa. Reiko Okano também se aventurou no aprendizado desses instrumentos; e segundo ela, a pessoa que tocava o koto era tida como sagrada, pois o tocar das cordas harmonizava os céus e a terra, o divino com o humano.

Aliás, para finalizar, a própria ideia de harmonia é uma constante na obra da mangaká. Essa ideia, se mal-entendida, pode causar confusões, como quando ela explica o porquê do ringue de sumô não ser feito para as mulheres. Segundo ela, o ringue representa o feminino, que é a própria morada do sagrado (daí ela falar bastante no divino-feminino).

Daí o sumô, como competição de força e ritual de purificação, harmonizar o feminino com o masculino que fertiliza/purifica o ringue (o momento antes da luta onde os rikishi jogam sal pela arena). Essa explicação levanta a reflexão: Reiko Okano está “passando pano”? Ou somos nós quem estamos sendo confrontados com uma cosmologia diferente da nossa?

reiko okano

Seja como for, esse painel no Café Literário foi talvez o programa mais rico que cobrimos nesta Bienal e o desejo de ver essas obras publicadas em português é enorme. E, por parte da Reiko Okano, sua alegria de estar num evento tão cheio de energia foi bem visível. Ela expressou votos de coragem e confiança para as pessoas que queiram criar mangás e votos de felicidade para todos nós que compartilhamos o mesmo planeta Terra.