Somando à esteira das histórias protagonizadas pelo mundo nórdico, que contam com obras como Vikings (2013), Assassins Creed: Valhalla e Vinland Saga, a Editora Conrad traz uma tradução de um dos livros da jornalista e romancista Johanne Hildebrant. O título do livro “SIGRID: A Saga de Valhala” leva o nome de sua protagonista, Sigrid, nobre sueca que viveu no século X e é sobre ele que falaremos neste REVIEW.
VALHALA NO SÉCULO 21
Sigrid é mencionada em um antigo épico chamado Heimskringla, escrito no século XIII. Sua postura intransigente, desafiadora e apega às tradições nórdicas talvez serviram de inspiração para que Hildebrant pudesse reconstruir sua história em formato de literatura, bem como recontar toda a mitologia nórdica abraçando a supremacia feminina, onde Freia repousa no topo da hierarquia dos deuses.
SIGRID é narrado de forma tripartite, com três protagonistas: dois históricos, uma inteiramente fictícia. Temos Sigrid, a nobre sueca que recebe uma visão de Freia e é entregue a um casamento arranjado, Emma, uma escrava que desperta dons espirituais por intermédio da valquíria Kara e, por fim, Sven, o futuro Rei Sueno I, que no livro ainda é um jovem rapaz lutando com os jomsvikings e construindo um nome para si.
A história de Sven é o conto épico comum; um bastardo que luta para ser reconhecido e eventualmente se rebela contra seu pai, Harald Dente Azul. Fatos históricos podem ser considerados spoilers? Dificilmente. Além do quê, se alguém já assistiu Vinland Saga, já vai ter ligado os pontos e percebido que um dos protagonistas de SIGRID é o pai de um dos personagens principais do anime: o príncipe Cnut, filho de Sven e futuro rei tanto da Dinamarca quanto da Inglaterra.
Se Sven tem sua parte em um livro que glorifica o feminino e execra o masculino, mostrando todos os vícios de pagãos e cristãos (os últimos ainda mais, mas chegaremos lá), é porque ele é um pedestal para que a história de Sigrid resplandeça com mais vigor, tendo sido este marido dela afinal (segundo o Heimskringla). Em SIGRID, Odin é jogado para escanteio e Valhala adentra os portões do século 21: Freia é a maior das deusas, as sacerdotisas fazem os homens se curvar com sua autoridade e toda a vergonha e inglória é destinada àqueles que violentam as mulheres.
Se SIGRID consegue construir uma interessante história de conflitos políticos entre reinos, narrar de forma intrigante o baile de máscaras das relações de corte e montar boas reviravoltas, isso vem com um custo: seu antagonismo pessimamente construído.
FREIA GOOD, CRENTES BAD
Alteridade. Essa é uma palavrinha que não circula muito no dia-a-dia, bastante nichada pra ser bem sincero. Mas vital para se compreender o mundo e o relacionamento entre diferentes pessoas. Se a ordem do dia é a “diversidade”, conhecer sobre a alteridade, sobre tudo aquilo que diz respeito ao Outro, àquele que está além de Mim é um imperativo.
IGRID é um livro que pouco se importa com isso e executa sua relação com a alteridade de um jeito bem fraco, para não dizer pedante.
Até posso imaginar as razões para isso. É com certeza uma questão de público. É da natureza do público-alvo da cultura nórdica ter profundos ressentimentos com a expansão cristã pela Europa. Essa raiva só deve aumentar quando a história mostra que o menos favorito dos filhos de Sven, Cnut, tornou-se um rei cristão de três monarquias unificadas (Sigrid mostra-se continuamente enojada com qualquer interação com um cristão). Ainda que Vinland Saga tenha transformado Cnut em uma espécie de rei nietzschiano, tomado pela vontade de potência, os vestígios históricos sobre ele ainda apontam fortemente nessa direção.
Por isso que essa empreitada literária, apesar de literatura, se manifesta como um protesto contra a História, quase um manifesto contra o curso do tempo. E isso é ainda mais evidenciado nas cenas protagonizadas por Emma, a profetisa. Seu transe triunfante que perpassa todo o livro atinge o seu ápice quando ela faz de um monge o totem de todas as penúrias que ela passou na mão de todos os homens. E o livro não mede esforços para descrever tanto o monge como qualquer outro cristão da forma mais caricata possível. A alteridade em SIGRID é dessa mesma ordem: o Outro é um ser que balbucia, um fanático, um fora-de-si, um obcecado em manipular mentes, um iludido predestinado à derrota e qualquer outro adjetivo que você espera vindo de um adolescente, que não deixa de ser o público-alvo de SIGRID. Mas esse trato quase ufanista que Hildebrant faz das antigas tradições torna SIGRID quase uma versão pagã de “Deus Não Está Morto”.
CONCLUSÃO
A boa notícia é que nem sempre uma história muito complexa é algo necessário; sequer desejado. No que diz respeito à cultura pop, nada mais pop do que “pagans good, christians bad”, então SIGRID é um livro que cumpre com excelência o trabalho de ser apelativo ao seu público lavo. E sim, Hildebrant constrói ótimas personagens femininas. De estratos sociais diferentes, Sigrid e Emma eventualmente convergem em um destino em comum, unidas por uma reverência a algo maior que as duas. Esse apelo (acidental ou não) ao transcendental dá profundidade ao livro.
Não quero, entretanto, me alongar nas personagens em si. SIGRID é bem escrito e suas cerca de 350 páginas voam pelos olhos, então vale muito mais a pena testemunhar esse desenvolvimento por si só e dar uma chance ao livro de Johanne Hidelbrant. Ele possui uma sequência já lançada pela autora e faria bem ver essa continuação traduzida, completando a história em português.