Esmiuçar um anime como Monster não é a mais simples das tarefas. Parece uma comparação forçada, mas é um desafio tal como fazer uma análise detalhada de “O Conde de Monte Cristo”, clássico romance de Alexandre Dumas que ganhou uma maravilhosa adaptação para anime em 2006.
Mas isso é para dizer que Monster é um anime bastante denso, que toca em várias questões humanas enquanto movimenta uma narrativa tão dispersa quanto bem-desenvolvida, por incrível que pareça! E essas são características que geralmente descrevem bem o que se considera como um “clássico”. Por enquanto, podemos chegar a um acordo nesta definição: um clássico é algo que sempre continua tendo o que nos dizer, mesmo com o passar dos anos.
Esse é o tipo de definição que parece fazer eco com o que os ingleses chamam de “teste do tempo” em várias ocasiões; obras que sobreviveram à sua época e que consegue se comunicar com outras. Dito de outro modo, um clássico é algo que é assim qualificado por um tipo de plebiscito diário, que o confirma ou o descarta.
Dito isto, 12 anos depois de terminada a exibição dos 74 episódios de Monster, em maio de 2018 eu o assisti pela primeira vez e me sinto tão inclinado a admira-lo quanto as pessoas que o assistiram na época e que fizeram deste um estouro no mundo dos animes. E tenho fortes razões para crer que qualquer pessoa que assista Monster daqui a 12 anos também se surpreender e se envolva de forma íntima com o anime, pois pelo mesmo jeito que escrevi acima, Monster é uma obra com um enorme potencial para ser visto e revisto várias vezes, pois toca em questões últimas que sempre retornam à ordem do dia. Ora de forma mais implícita, ora de forma mais explícita, mas sempre presente, a principal pergunta explorada pelo anime é esta: qual o valor da vida? E é desta pergunta, que sucedem todas as outras.
Avaliando os méritos de Monster
FILOSÓFICO
A justificativa que eu acabei de dar para dizer que Monster pode ser considerado um clássico vem de um mérito digamos, filosófico. Ele confronta os personagens e os espectadores com uma questão elementar. Ao invés do clássico “Qual o sentido da vida?”, aqui temos algo tão cheio de pegadinhas quanto: ”Qual o valor da vida?”. Todas as vidas possuem o mesmo valor? O doutor Tenma é confrontado com esse dilema logo de cara, quando ele é forçado a priorizar umas vidas sobre outras a capricho de seu chefe. O que vai de encontro com suas convicções profissionais como médico, que é sempre priorizar a vida de quem chegou primeiro.
Para um médico como Kenzou Tenma, o valor da vida está dado pelo legado de sua profissão. Uma vida é o que há de mais valioso e é o que deve ser protegido a qualquer custo, como assim manda o Juramento de Hipócrates (o antepassado grego da medicina ocidental). Mesmo esse juramento tendo várias versões ao longo da história, sua mensagem central atravessou os séculos até os dias de hoje. E pela dedicação indiscriminada que Kenzou tem a qualquer paciente que seja: malfeitor ou benfeitor, rico ou pobre, temos alguma base pra supor que este médico, que vive para sua profissão na paz e na adversidade, vive pelo seu juramento como médico.
De forma paralela, Monster nos mostra o extremo oposto dessa convicção que acabamos de ler, personificada no jovem Johann Liebert. O encontro de Kenzou e Johann na sala de operações forma o maior paradoxo do anime: um doutor que preza a vida como a mais sagrada de todas as coisas salva a vida de um jovem para quem o valor da vida é tão insignificante quanto uma trilha de formigas andando no meio do mato. E o resultado final disso cria uma verdadeira crise na consciência no jovem médico anos mais tarde, ao descobrir que a vida que ele salvara havia matado e continuava matando outras, sem a menor preocupação, sem o menor remorso e sem deixar qualquer vestígio. Johann sempre consegue se despistar e consegue incriminar Kenzou, que passa os próximos anos de sua vida como um fugitivo, tentando provar sua inocência.
Johan é um personagem fascinante, no mínimo. Em seu interior, há a completa ausência de qualquer moralidade; mesmo até o final, nunca fica certo o porquê de ele agir do modo como age, como uma nuvem de destruição que procura executar o mais perfeito caos. Por trás do jovem belo, simpático e educado perante todos, há o vazio. A origem desse vazio também é um tema bastante discutível: ele teria se tornado vazio ou nasceu vazio? Existe como nascer alguém mal, ou o bom-selvagem de Rousseau é real e somos nós que coletivamente criamos e perpetuamos o Mal? Durante quase todo o anime, Monster nos confronta diretamente com esse problema bastante presente, ainda que pouco pensado.
Podemos ver em vários outros personagens como ações maldosas são feitas pelos diversos interesses. Pode ser pelo desejo de poder, como o antigo diretor do hospital de Dusseldorf. Pode ser pela convicção sólida em uma ideia de “raça pura”, como é o caso em Baby e sua organização neonazista. Mas em Johan não há intenção maior, nem ideal maior, nem desejo maior. Há o “Monstro”. O monstro que nele habita, “que está prestes a explodir”. Esse personagem, talvez o maior eixo do anime inteiro, seja o maior espelho onde nos vemos diante de um mal natural, sem causa, mas que apenas existe.
De maneira resumida, o valor da vida e o problema do mal são os maiores temas filosóficos de Monster. Temas implícitos e que obrigam a qualquer espectador minimamente atento a prestar atenção neles, nem que seja enquanto assiste a obra.
HISTÓRICO-GEOGRÁFICO
Mas esses grandes temas não poderiam ser bem apresentados sem o ambiente muito bem construído e pesquisado onde Naoki Urusawa insere seus personagens. Este ambiente possui méritos que eu chamo de “histórico-geográficos” pelo seguinte motivo: não só as cidades apresentadas em Monster são muito bem representadas (Düsseldorf, Heidelberg, Munique, Frankfurt e Praga), como os eventos do anime estão condicionados aos eventos históricos que assolaram a Europa Oriental no final do século XX, a dizer: A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Isso é muito fácil de perceber pelo salto de 10 anos que acontece do momento em que Kenzou Tenma ingressa como cirurgião no Hospital de Düsseldorf até os misteriosos assassinatos que começam a acontecer ao redor dele.
Quando Tenma é obrigado a vaguear de um lugar para outro em busca de sua inocência, observamos o contraste de várias vidas que moram não apenas numa nova Alemanha, mas numa nova realidade. Desde pessoas simples que tiveram de se acostumar com os novos tempos a pessoas que se beneficiavam com o antigo estado de coisas na Alemanha Oriental e que deram o seu jeito para mascarar seu passado controverso.
E o mais controverso dos passados que é revelado de pouco em pouco no anime, é o antigo centro de reeducação “511 Kinderheim”. Uma espécie de orfanato que realizava experimentos psicológicos em crianças para a construção de um “cidadão ideal”. Ao contrário do que se pretendeu, desse orfanato não saíram modelos ideais de cidadãos, mas indivíduos com sequelas mentais irreversíveis.
Apesar de o orfanato ser fictício, o bloco soviético teve uma história bem semelhante. Não na Alemanha Oriental, mas na Romênia. Entre dezembro de 1949 e setembro de 1951, uma prisão na cidade de Pitesti conduziu experimentos de “reeducação” que em muito se assemelham às torturas físicas e psicológicas mostradas no 511 Kinderheim. É plausível supor que essa semelhança não é acidental e que de fato Urusawa inseriu este triste acontecimento na história humana em sua obra.
Mas Urusawa não é de forma alguma unilateral. O modo sensível como ele mostra a situação dos imigrantes turcos que chegavam à Alemanha desde a década de 1960 e os conflitos que surgiram dessa onda imigratória, são nuances dignas de nota. Com o boom econômico na Alemanha Ocidental, crescia a necessidade de mão-de-obra para trabalhar no país e um acordo com a Turquia foi feito para amenizar a situação. Na época, se imaginava uma “imigração temporária”, mas na realidade o que se viu foram comunidades de imigrantes turcos nascendo nas cidades alemãs, o que causou e continua causando atritos até hoje. Um dos primeiros arcos em Monster, ainda na primeira metade do anime, explora esse conflito, onde uma organização neonazista planeja incendiar um bairro de imigrantes turcos.
Por último, Monster usa de um acontecimento muito comum ao longo da Guerra Fria: os refugiados que escapavam de seus países de origem para viverem em paz. Os pais adotivos de Johann e Anna, os Liebert, são apresentados como refugiados da Alemanha Oriental. Como atravessar as duas Alemanhas diretamente era algo muito arriscado, onde muitos perdiam a vida nas mãos das patrulhas das fronteiras, costumava-se atravessar a fronteira pela Tchecoslováquia, como a mãe dos irmãos Liebert tenta fazer com sua amiga, a mãe de Karl Neumann, um dos personagens-chave para compreender o enigma que envolve o passado de Johann e Anna. Ao se passar nos anos 90, Monster nos leva para um tempo onde fronteiras nacionais era uma questão de vida ou morte num mundo bipolarizado.
QUATRO PERSONAGENS MARCANTES: EVA, LUNGEN, ANNA E GRIMMER
Monster tem muitos personagens, mais do que uma análise possa dar conta. Mesmo a história do anime podendo ser resumida em seus dois maiores agentes, não se deixem enganar: todos os personagens, por menores que sejam, por menos relevantes que sejam na história como um todo, todos são desenvolvidos na medida certa. Praticamente não há tapa-buraco. Todos parecem relevantes enquanto assistimos até o anime mudar de cenário e, quando menos percebemos, novos atores entram em cena e estamos com o foco mudado de uma hora pra outra.
Para tentar falar um pouco que seja sobre os principais personagens que de fato tem sua própria jornada paralela a de Kenzou Tenma – mas nem um pouco menos importante por isso – escolhi Eva Heinemann, Heinrich Lungen, Anna Liebert e Wolfgang Grimmer. Julgo estes quatro como sendo os personagens que tornam toda a experiência de assistir Monster ainda mais rica.
Eva Heinemann é a filha do Dr. Heinemann, diretor do Hospital de Dusseldorf e chefe de Tenma. Além de prometer sucesso profissional, o Dr. Heinemann também arranjou um noivado para o jovem cirurgião sob a condição de sua completa subordinação. E tudo o que Eva mais quer é um futuro garantido de muita luxúria e riqueza, já vividas sob as asas do pai rico e bem-sucedido. Quando Tenma não é mais visto como essa oportunidade, ela não tarda em descarta-lo como algo sem importância e se atirar nos braços do próximo prometido pelo pai.
Quando o Dr. Heinemann é assassinado, Eva perde a estabilidade do seu estilo de vida bastante caro. E ela mesma não sendo nenhuma pessoa notável, dependendo do pai para ser notada pelos outros, a mesma se volta para Tenma, percebendo que ele havia sido o único homem que a havia amado de forma genuína. Lógico, nesse momento Tenma voltou a ser um profissional bem-sucedido, então podemos pensar que Eva ainda não largou de seu interesse materialista. Com certeza, Tenma a rejeitou desta vez ao perceber isso. E essa rejeição transformou seu ex-noivo no alvo onde ela depositaria todas as culpas de sua vida ter chegado a esse ponto. Desse ponto em diante, Eva segue ladeira abaixo, de divórcio atrás de divórcio, se entregando ao álcool e culpando Tenma pelo seu destino a ponto de dar falso testemunho para o detetive Lungen.
O que impressiona na personagem, é que mesmo ela se demonstrando o pior tipo de ser humano, há espaço para redenção. Com idas e vindas, às vezes sumindo por tanto tempo que você esquece que ela existe, Eva Heinemann acaba, em certo momento, percebendo de forma decisiva o valor da vida. Não há como esmiuçar esse processo aqui, mas a catarse de Eva (genuína como em Édipo Rei) vai sendo percebida logo ao final com suas mudanças de atitude e mesmo no seu próprio traço. Como a imagem acima mostra, Monster, como em tantos outros animes, desenha personalidades através de traços faciais: uma alcoólatra cheia de rancor vai ganhando feições mais humanas, de alguém que pensou no que tem sido sua vida até o momento.
Heinrich Lungen é um detetive da BKA, uma “Polícia Federal” alemã em nossos termos. Cabe a ele investigar as mortes misteriosas no hospital em Dusseldorf. Conhecido por ser extremamente aplicado a seu trabalho, Lungen beira muitas vezes à obsessão, guardando informações de um caso “digitando” um teclado imaginado por ele. Não importa o tempo que passe, Lungen está sempre tentando solucionar os enigmas, sempre de modo frio e racional, pois a boa razão sempre trará suas respostas.
Mas e quando não estamos lidando com alguém puramente racional? Que conhece perfeitamente os caminhos da razão para assim manipulá-los e poder disfarçar sua culpa sobre outra pessoa? A astúcia com que Johan Liebert orquestra tudo para que a culpa caia sobre o colo de Tenma, faz com que Lungen crie uma certeza racional, por vezes teimosa, em cima do doutor, que só se torna esclarecida muito perto do final do anime.
Pouco é dito sobre sua vida pessoal e nada sobre seu passado. O que Lungen nos mostra são as possíveis consequências trágicas para a vida pessoal de alguém que dedica sua vida exclusivamente a seu trabalho, por mais nobre que ele seja. Um psicólogo criminalista chamado Rudy Gillen, colega de Tenma na universidade e convencido da inocência deste, em determinado episódio, faz uma análise interessante da mente de Lungen, numa discussão com o detetive. Mantendo a expressão rígida o anime inteiro, com os seus olhos cerrados como os de um animal em busca da caça, Lungen é o elemento de Monster que mais enfatiza o que há de thriller policial no anime. São em suas cenas onde costumamos rever e resumir o que está acontecendo.
O mais atraente na história de Anna Liebert, a irmã gêmea de Johan, é sua jornada de redescoberta. São coisas próprias de alguns traumas: o impacto na mente é tão profundo que sua memória é apagada, você é tomado de uma amnésia de um jeito que nada anterior ao trauma é possível de ser lembrado. Quando a tragédia bate à porta do novo lar de Anna em Heidelberg, ela se torna a partir da qual investigamos o passado dos gêmeos, da estadia na Universidade de Frankfurt às peregrinações por Munique e Praga, para sabermos de locais chave para o enredo, como o já dito 511 Kinderheim e a “Mansão da Rosa Vermelha”. Para ajuda-la a recuperar essas memórias apagadas pelo trauma, o já mencionado colega de Kenzou Tenma, Gillen, realiza sessões de hipnose que chegam a revelar um lado mais sombrio da jovem.
Por último, Wolfgang Grimmer. Um jornalista free-lancer originalmente da Alemanha Oriental, que investiga sobre o antigo reformatório, o 511 Kinderheim. Isso faz com o seu caminho e o de Tenma se cruzem em direção à cidade de Praga. Por ter o hábito de trabalhar com as palavras num regime bastante restrito, e por ter testemunhado todo o tipo de falsa acusação, ele consegue perceber rápido a inocência de Tenma. Seu semblante está sempre sorridente, mas Grimmer é um personagem-chave para compreender o enigma do 511 Kinderheim, por ser praticamente o único sobrevivente a viver uma vida “tranquila”.
“De todas as coisas para aprender, qual você acha que era a mais difícil? Como sorrir.”
Os sorrisos de Grimmer ganham uma nova luz sob esse fato. Por trás dos sorrisos, há um homem que foi ensinado a sorrir e que na realidade não “sabe” sentir nada. Mas ele foi ensinado e moldado de modo a saber como agir de acordo com cada situação e se passar por alguém sociável. Mas essas lições não o ensinam a como agir diante da morte de um ente querido, como o próprio filho. O tempo no reformatório suprime esse tipo de discernimento emocional.
CONCLUSÃO
Eu não posso dizer que Monster é a obra-prima de Naoki Urusawa. Para isso, eu teria de ver seus outros trabalhos que são igualmente aclamados, como “20th Century Boys”. Mas posso dizer sem sombra de dúvida que Monster foi um dos melhores animes que já tive o prazer de assistir. Uma mistura bem somada de personagens bem desenvolvidos, um enredo envolvente com reviravoltas bem posicionadas, uma arte bastante humanizada, o que é raro de se ver na maioria dos animes, uma animação bem trabalhada digna do estúdio Madhouse e uma trilha sonora que sabe captar os momentos do anime, desde os mais agradáveis (Monster tem espaço até para isso!) até os momentos onde você sente a morte por perto. Faço menção mais que especial ao primeiro encerramento, cantando por ninguém mais ninguém menos que David Sylvian, frontman do “Japan”, uma banda de new-wave muito famosa na Inglaterra e no Japão durante os anos 80. Seu visual foi, sem sombra de dúvida, uma inspiração nítida para o design de Johan Liebert.
Tudo o que foi dito aqui em quase três mil palavras ainda não é suficiente para exprimir tudo o que Monster significa e pode significar, com a bagagem certa e o olhar bem direcionado. O anime não se esgota nesta Análise pois as questões que ele levanta são questões que ainda estamos respondendo ao longo de milhares de anos. O convite fica aberto para você que ainda não viu, assistir esta obra-prima e, para você que viu, julgar o quão adequadas ou inadequadas foram estas palavras.