Brigas no Twitter podem atingir níveis inimagináveis, principalmente quando envolvem assuntos polêmicos e uma ou duas celebridades. A Milk Tea Alliance [Aliança do Chá com Leite] é o exemplo perfeito do que essas discussões em grande escala podem gerar.

Ainda que já tenha ouvido esse nome ou visto sua hashtag no Twitter, você sabe como ele surgiu? Pois pegue você também um chazinho e venha com a gente descobrir a história desse movimento que tem ganhado cada vez mais visibilidade na Ásia, tanto dentro quanto fora da internet.

O Início

Essa jornada começou em abril do ano passado, quando a modelo e influencer Weeraya Sukaram, conhecida como “Nnevvy”, compartilhou um tweet sugerindo que o Coronavírus havia sido desenvolvido em um laboratório de Wuhan, e que Pequim havia omitido informações e silenciado investigações, causando revolta em seus seguidores chineses.

Depois de uma “inspeção” nas redes sociais de Weeraya, os mesmos seguidores descobriram um comentário de autoria da modelo em uma publicação de 2017 em seu perfil do Instagram, sugerindo haver uma distinção entre Taiwan e China. Isso deixou os fãs chineses ainda mais zangados, pois Pequim não reconhece a ilha de Taiwan como um país independente, mas como uma província renegada, uma “filha rebelde”.

A Bola de Neve Começa a Aumentar

As coisas ficaram ainda mais complicadas quando os internautas chineses, através da plataforma Weibo, convocaram um boicote ao drama tailandês 2gether The Series, que estava indo ao ar nesta mesma época e era protagonizado pelo então namorado de Weeraya, o ator Vachirawit Chivaaree, conhecido como Bright. Isso porque, em 8 de abril, o jovem havia curtido e retweetado algo “que não deveria”.

A publicação foi excluída pelo seu autor original, um fotógrafo tailandês, que se desculpou mais tarde por tê-la feito; no entanto, os tweets feitos em resposta ainda estão disponíveis, e indicam que o post em questão era uma sequência de fotos de Hong Kong cuja legenda dava a entender que o fotógrafo estava referindo ao território como um país independente. Acontece que Pequim também não considera Hong Kong como um país, mas como uma Região Administrativa Especial.

Depois de receber várias críticas de seus fãs chineses em relação à postagem, Bright publicou um pedido de desculpas em seu Twitter, esclarecendo que ele tinha dado atenção apenas à imagem, enquanto a legenda da publicação tinha passado despercebida.

[Eu também sinto muito pelo compartilhamento imprudente, eu vi apenas as fotos e não li claramente as legendas. Não cometerei um erro assim da próxima vez.]  

Outro ator tailandês, Tawan Vihokratana, conhecido como Tay, amigo e colega de Bright, havia retweetado a mesma postagem e também publicou um pedido de desculpas, apesar de não ter recebido a mesma quantidade de críticas por parte dos usuários e fãs chineses, o que provavelmente se deve ao relacionamento de Vachirawit e Weeraya.

Envolvimento dos Ativistas

A discussão foi além do que se podia imaginar, com muitos tweets em tailandês, chinês e inglês utilizando a hashtag #nnevvy — alguns bem agressivos. A cavalaria virtual em defesa de Bright e Nnevvy já contava tanto com fãs quanto com ativistas políticos nacionais e internacionais.

Antes mesmo de Vachirawit se desculpar, o casal já tinha atraído a atenção e o apoio de indivíduos e grupos pró-democracia em Taiwan e Hong Kong, como o ativista Joshua Wong:

[1. Hong Kong apoia nossos amigos amantes da liberdade na Tailândia contra o bullying chinês! #nnevvy]

O ativista também tweetou sobre utilizar aquela oportunidade para criar uma rede solidária pan-asiática contra todas as formas de autoritarismo.

Wong foi um dos principais líderes das manifestações que ocorreram em Hong Kong no ano de 2019. O jovem era filiado ao antigo partido pró-democracia Demosistou, que encerrou suas atividades em junho de 2020 por conta do endurecimento das leis de segurança nacional da China. Em 2 de dezembro de 2020, Wong foi condenado a 13 meses de prisão por organizar um protesto contra um projeto de lei de extradição para a China continental, aprovado em junho do mesmo ano.

Além dele, internautas de outros países asiáticos, como Mianmar, se juntaram à discussão, aproveitando a ocasião para denunciar e criticar tanto o autoritarismo e a repressão de Pequim em relação aos territórios de Hong Kong e Taiwan, quanto a influência do governo chinês em seus próprios países ao longo dos anos.

A Arma Secreta dos Tailandeses

Como resposta, os chineses começaram a criticar os principais líderes tailandeses: o Rei Maha Vajiralongkorn Bodindradebayavarangkun, conhecido como Rei Rama X, e o Primeiro-ministro tailandês Prayut Chan-ocha; além de classificar a Tailândia como um país “pobre” e “ultrapassado”.

No entanto, ao invés de se ofender com os insultos, os tailandeses fizeram algo que o outro lado não esperava: eles concordaram. De fato, uma grande parcela dos súditos do Rei Rama X já não estava contente com o comportamento autoritário da família real, muito menos com o de Prayut.

Uma maioria esmagadora dos internautas tailandeses aproveitou para mostrar seu descontentamento com o próprio governo, criticando seus líderes políticos e aderindo à zombaria iniciada pelos chineses, que ficaram sem reação diante da reviravolta.

Os usuários pró-China acabaram até dando um sermão nos tailandeses, afirmando que eles não sabiam o significado de patriotismo; mas, a bem da verdade, não foram levados a sério por seus “adversários”.

Os tailandeses agora estavam fazendo uso da hashtag #nnevvy para postar piadas autodepreciativas em relação ao próprio governo — mais tarde, isso resultou em penalidades para muitos desses usuários por conta da rígida lei de lesa-majestade na Tailândia.

A hashtag também foi usada para difundir a música Prathet Ku Mee (What My Country’s Got), lançada em 2018 pelo grupo tailandês Rap Against Dictatorship, uma crítica inflamada contra a liderança militar do país, mostrando que eles não tinham medo de criticar seu governo. Confira:

“Liberdade, liberdade…”

Os dois lados dessa contenda virtual atingiram altos níveis de violência verbal durante o que parecia ser uma discussão interminável — e talvez ainda seja, mas com menos xingamentos. Isso inclui insultos como o acrônimo “NMSL” (em mandarim “Ni ma si le”), que em português significaria algo como desejar a morte da mãe da outra pessoa. Alguns tweets depois, os tailandeses mais uma vez viraram o jogo, respondendo que eles tinham “20 mães”, uma referência ao harém do Rei Rama X, e começaram a debochar dos usuários chineses fazendo uso desse mesmo acrônimo, renomeando a China como “República de NMSL” em memes.

De ambos os lados, a maioria dos tweets que usavam a hashtag #nnevvy continha insultos e palavrões; mas vários também falavam contra o autoritarismo e sobre liberdade de expressão de um modo geral.

Foi compartilhada inclusive uma lista de palavras e termos que Pequim costuma censurar nas redes controladas pelo Estado; entre elas: “Direitos Humanos”, “Tibete”, “Dalai Lama”, “Taiwan Formosa*”, “democratização”, “independência” e… “Winnie The Pooh”.

Quando um internauta questionou o motivo de o governo chinês censurar o nome do famoso ursinho amarelo, a jornalista Yenni Kwok, natural de Hong Kong, esclareceu que esse era um apelido do atual líder chinês Xi Jinping, comparado ao personagem infantil por sua aparência.

Vale também lembrar que até mesmo para acessar o Twitter e participar dessa discussão, os internautas chineses precisaram utilizar uma conexão VPN, uma vez que a rede social é bloqueada no país.

Muitos usuários insinuaram também que o governo chinês havia convocado para essa disputa os wumao — um termo em chinês que é usado para se referir a soldados pagos pelo Estado para lotar as redes com propagandas do Partido Comunista Chinês.

Posicionamento da Embaixada Chinesa na Tailândia

Dada a magnitude da situação, em 14 de abril de 2020, apenas seis dias após o início do conflito, a Embaixada Chinesa em Bangkok postou uma declaração em relação ao debate na página oficial do órgão no Facebook.

https://www.facebook.com/ChineseEmbassyinBangkok/posts/2942654555781330

Na declaração, a Embaixada afirmou que o Princípio da China Única é antigo e fortemente apoiado pelo governo tailandês e pelo público tailandês em geral, e que o “esquema” armado para sabotar a amizade entre os dois países não teria sucesso.

Essa publicação, no entanto, não obteve o efeito esperado pelo órgão; internautas tailandeses esclareceram nos comentários que a opinião do governo tailandês não é necessariamente a opinião do próprio povo, e que era arrogante por parte da Embaixada inferir que a Tailândia como um todo era a favor do Princípio da China Única. Em apenas dois dias, a declaração já havia recebido mais de dois milhões de respostas, juntando o Facebook e o Twitter.

Afinal, por que “Milk Tea Alliance”?

Como dito anteriormente, depois que os tailandeses estenderam seu apoio a Hong Kong e Taiwan, defendendo a soberania dos territórios, usuários de outros países asiáticos entraram no debate contra o autoritarismo de Pequim e a influência do governo chinês na região.

O nome Milk Tea Alliance foi adotado depois de perceberem que os países dessa região, com exceção da China, consomem receitas variadas de chá com leite. Logo, a combinação tornou-se o símbolo do que começou com um meme em meio a uma acalorada discussão online: uma rede virtual de apoio internacional contra o autoritarismo político e que ganhou mais notoriedade do que se imaginava.

[Esqueçam o BRI: a Milk Tea Alliance está pronta para remodelar as alianças estratégicas na Ásia #nnevvy]

Um usuário brincou dizendo que essa nova aliança poderia muito bem substituir o BRI (Belt Road Initiative, ou Iniciativa do Cinturão e Rota da Seda), um projeto de Pequim para melhorar a conectividade comercial, mas que é vista por muitos como uma tentativa de forçar o domínio chinês na região de modo industrial, financeiro e político.

Em abril, o movimento completou um ano de existência e ganhou até um emoji do Twitter (7) em comemoração ao seu primeiro aniversário — um copo branco de chá em um fundo de três cores diferentes, que representam as cores dos principais tipos de bebidas à base de chá com leite na região onde o movimento se iniciou.

[“Hoje estamos lançando um emoji para a #MilkTeaAlliance, uma aliança solidária online que começou em abril de 2020 como um meme do Twitter e se tornou um movimento global pró-democracia liderado por ativistas e cidadão conscientes em HK/TH/TW/MM e ao redor do mundo.”]

A hashtag #MilkTeaAlliance, combinada a outras, foi e ainda vem sendo amplamente usada em postagens de apoio à população tailandesa (#WhatsHappeningInThailand), por conta dos protestos que têm tomado o país desde o primeiro semestre de 2020, e à população de Mianmar (#SaveMyanmar) depois de o exército ter realizado um golpe de Estado e deposto a líder Aung San Suu Kyi em fevereiro deste ano.

Parece que Joshua Wong estava certo: pela internet, a população desses países encontrou mais uma forma de fazer sua voz ser ouvida, obtendo apoio dentro e fora da Ásia, e parece que essa aliança ainda está longe de acabar.


Fontes e Referências:

*Ilha Formosa é o nome dado à ilha de Taiwan por navegantes portugueses do século XVI, que a chamaram assim por estarem encantados com sua beleza, e se tornou o título mais popular dado a ela na literatura européia até o século XX.

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