Não é novidade que os animes e mangás tenham histórias e simbologias mais profundas do que se pode notar na superfície. Eles carregam uma grande bagagem histórica, sentimental e psicológica que muitas vezes pode passar despercebida. Então, para nos ajudar a desvendar essas pequenas minúcias das obras que tanto amamos, a psicóloga Ivelise Fortim organizou o livro ‘Mangás, Animes e a Psicologia’. Ele foi lançado em 2017 pela Homo Ludens e conta com aproximadamente 180 páginas.
Baseado em sua maioria na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, o título analisa 14 histórias japonesas e o mundo dos yaois de um ponto de vista psicológico, social e/ou histórico. O foco principal de Jung está no consciente e inconsciente humano, além dos fatores que podem influenciá-los, então várias análises do livro giram em torno desta perspectiva.
Grande parte dos autores estão ligados ao mundo acadêmico da Psicologia, tanto como professores, alunos ou ex-alunos do curso. Eles são:
- Ivelise Fortim
- Anne Aguemi
- Antonio Carlos dos Santos Gomes
- Ceres Alves de Araujo
- Cristiana Rohrs Lembro
- Flavia Arantes Hime
- Juliano Alves
- Katia Regina Oushiro
- Louise de França Monteiro
- Luiz Ojima Sakuda
- Luna Pereira Gimenez
- Marcos Daniel G. Polcino
- Naomi Prata Feldman
- Paula Guimarães
- Victor Lippelt Matheus
- Victor Sancassani
- Prefácio: Sonia M. Bibe Luyten
De Otakus Para Otakus
Mangás, Animes e a Psicologia é um livro muito interessante e enriquecedor para quem gosta de se aprofundar nas narrativas e no mundo dos ‘animangás’, como eles chamam no livro. Sabendo que os animes muitas vezes são menosprezados, ou vistos apenas como conteúdo infantil, é gratificante ler um conteúdo que os enxerga com mais profundidade e seriedade.
Além disso, fica claro que os autores dominam não apenas o conteúdo acadêmico sobre o qual escrevem, mas também entendem dos animes e mangás que analisaram. Assim, mesmo que eu não tenha assistido a todas as obras presentes no livro, com as explicações fornecidas não me senti perdida sobre o assunto abordado.
Inclusive, aproveito para listar os animangás analisados no livro:
- Naruto
- Pokémon
- InuYasha
- Kamui
- Death Note
- Angel Beats
- Paranoia Agent
- O Serviço de Entregas de Kiki
- Cavaleiros do Zodíaco
- Sakura Card Captor
- A Viagem de Chihiro
- A Princesa e o Cavaleiro
- Patrulha Estelar Yamato
- Yu Yu Hakusho
- Mangás Yaoi
Ainda, o livro começa com uma rica introdução deste universo, explicando e apresentando as narrativas japonesas, o mundo otaku e as influências dele para os consumidores.
Como o título traz várias obras, falarei sobre as que mais me chamaram atenção.
Um mergulho no inconsciente
Como falei anteriormente, muitas das análises foram baseadas na psicologia analítica de Jung, entre elas a análise de Angel Beats.
Luna Pereira Gimezes, autora desta parte do livro, fez uma recapitulação completa da história do anime, interpretando cada momento importante que aconteceu sob o ponto de vista da psicologia, levantando hipóteses do que cada momento pode simbolizar.
Ela analisa a relação da personagem principal, Yuri, com a racionalidade e com Deus (pois a personagem o acha muito irracional), explicando como isso reflete em suas atitudes tomadas no decorrer do anime. Assim, a autora explica como Yuri tenta ser uma pessoa puramente racional e reprime a irracionalidade, transformando-a em sua sombra (conceito Junguiano para descrever a “personalidade oculta” que todos possuem, em palavras simples e rápidas), e como isso reflete em suas motivações, principalmente em perseguir e rejeitar Kanade a qualquer custo. Pois, de certa forma, Kanade representaria a parte da personalidade de Yuri que ela gostaria de reprimir e rejeitar dentro de si mesma.
Uma análise parecida é feita com Death Note. Anne Aguemi, responsável por este capítulo, se aprofunda tanto nos conceitos explicados, como no estudo do personagem Light Yagami. Ela acompanha o desenvolvimento de Light para Kira, obcecado por se tornar um Deus, e como a sua persona (a parte da personalidade que mostramos para o mundo) é consumida por sua sombra. Trançando quase um passo a passo do personagem, ela interpreta como o assassino dentro de Kira prevaleceu ao “bom moço” que ele era.
Anne Aguemi não para por aí: ela explica também a simbologia da maçã, fruta que se tornou um dos ícones do anime, e da relação entre Kira e L, os dois lados da moeda da justiça.
A análise de Death Note é um deleite para ler, pois primeiro a autora explica todos os conceitos com os quais vai trabalhar, de forma que pessoas leigas, como eu, consigam entender e depois os aplica na história do anime/mangá. E ainda, para finalizar, ela encerra com uma teoria da conspiração levantada pelos fãs a respeito do Shinigami Sem Nome, e eu particularmente sou chegada nessas teorias mirabolantes.
O ninja e o bruxo
Outra abordagem vista em Mangás, Animes e a Psicologia foi o emprego da Jornada do Herói nas histórias. Originalmente, ela foi criada por Joseph Campbell, e anos depois foi explorada novamente por Christopher Vogler. Basicamente, a Jornada do Herói consiste nos pontos chaves que a maioria das histórias ao redor do mundo seguem, sendo dividida em três atos, cada um com seu significado e roteiro pré-definido.
Como Naruteira de carteirinha, não podia deixar de falar sobre a análise de Naruto em comparação à história de Harry Potter, escrita por Ivelise Fortim e Victor Sancassani. Nesta parte do livro os autores traçam um paralelo entre as histórias, primeiro nos apresentando as semelhanças entre elas.
É incrível perceber que mesmo sendo realidades tão distantes, ambas as narrativas possuem tantas semelhanças: os dois são órfãos, carregam um legado deixado pelo assassino de seus pais, são vistos tanto com admiração quanto com desprezo, são orientados pela figura de um velho sábio, possuem habilidades extraordinárias, dentre outras coisas que você pode descobrir lendo o livro.
No entanto, eles nos mostram que mesmo tão semelhantes são tão distintos, principalmente por Naruto seguir a narrativa dos heróis dos shonens, muito baseada nos valores dos samurais. Assim, o livro também nos dá um panorama da diferença entre a jornada e os pensamentos orientais dos ocidentais, apresentando exemplos palpáveis das narrativas.
Novamente, sou uma Naruteira de primeira, então devo dizer que adorei ler essa comparação. Dentre vários motivos, os autores mostram que uma das diferenças, por exemplo, é que as habilidades de Naruto não surgiram do nada, como aconteceu com Harry, mas que ele teve de sofrer e batalhar por elas. Mas isso é apenas a opinião de uma fã apaixonada que acredita que o ninja é mais legal do que o bruxo, você pode tirar suas próprias conclusões.
Considerações Finais
Como eu disse acima, são várias as obras abordadas neste livro, todas muito valiosas e significativas. Como a discussão sobre gênero e sexualidade abordada na análise de A Princesa e o Cavaleiro, ou a jornada do feminino em busca de seu amadurecimento, com outro queridinho meu, A Viagem de Chihiro, a profunda e detalhada abordagem histórica e social de como os japoneses lidaram com a segunda guerra mundial com a análise de Patrulha Estrelar Yamato, e até mesmo o maravilhoso panorama da sexualidade feminina e sua forma de protesto com os mangás yaoi. No entanto, para eu dissertar sobre cada um deles teria que dispor de muito tempo e muito espaço.
Portanto, para finalizar farei apenas algumas considerações. Um dos únicos fatores negativos que encontrei no livro foram algumas falhas de revisão. Um exemplo que posso dar é na própria contracapa, na qual está escrito “A Viagem de Chihiriro”, ao invés de Chihiro. De qualquer forma, não foi um fator que me incomodou tremendamente, tampouco teve grandes influências na leitura.
Por fim, digo que Mangás Animes e a Psicologia é uma ótima escolha para aqueles que gostam de se aprofundar neste universo, de interpretações psicológicas e até mesmo de algumas teorias da conspiração. Então prepare uma bebida, sente no seu divã e desvende o que está por trás das histórias que pensávamos entender de cabo a rabo.