O que faz um bom terror? Ou, melhor ainda, a pergunta para iniciar essa discussão é: o que torna um terror um clássico, além de bom? E o que faz Dead Space ser tão bom?

!! CUIDADO!! SPOILERS ABAIXO!!

Por trás do óbvio

Do meu ponto de vista, existem duas coisas que determinam um terror. A primeira é a mais aparente: o que provoca a reação imediata de repulsa? Ou seja, aquilo que as pessoas descrevem de imediato: é um filme de serial killer passando a faca na galera? Zumbis comendo gente? Vai ter mutilação, ou vampiro bebendo sangue, ou fantasma, ou um ser de outra dimensão?

Enquanto isso, a segunda coisa é mais sutil: quais são os temas mais profundos que aquela obra deseja explorar? É sobre a inevitável entropia do universo? Sobre as inseguranças e cobranças no relacionamento de determinados personagens? Talvez, sobre como a aparente paz das cidadezinhas do interior dos EUA pode ser uma mera ilusão, que se extingue no primeiro Halloween?

Sendo assim, os grandes filmes costumam ir além do óbvio. Esses dias assisti o filme X, do diretor Ti West. A primeira camada é imediatamente aparente: é um filme de assassino. Portanto, você verá tridentes atravessando globos oculares, tiros de escopeta explodindo cabeças, um crocodilo arrancando a cabeça de alguém, e a pior de todas, uma senhorinha de 90 anos esfaqueando um jovem no pescoço tantas vezes que sua cabeça fica pendurada apenas por nervos. Essas cenas provocam um imediato sentimento de repulsa, uma resposta instintiva.

No entanto, X também é um filme no qual a dita senhorinha assassina de 90 anos observa a atriz pornô Maxine no auge de sua juventude. Em decorrência disso, ela sente falta dos dias em que era desejada, jovem e cheia de sonhos. Juntamente, quer ter aquele corpo de quando tinha 20 e poucos e deseja tocá-lo, enquanto enche-se de ódio por essa molecada filmando no seu quintal. Assim, X é sobre o medo de ter um tridente enfiado pelos olhos, mas é também sobre o medo de envelhecer, um medo muito mais primordial e íntimo, e inescapável, para todos nós.

Influências

Acredito que essa condição do terror explique a existência do remake de Dead Space muito mais do que qualquer outra coisa. Afinal, ele era, mesmo lá em 2008, um jogo que exibia orgulhosamente suas influências. Seus desenvolvedores explicavam abertamente como queriam montar um sucessor espiritual para System Shock 2 ambientado numa estação espacial cheia de monstros alienígenas.

Porém, quando Resident Evil 4 chegou em 2004, eles viram o jogo e falaram “pô peraí, a gente quer isso aí!” e mudaram o design para ser Resident Evil 4 no espaço. No entanto, a equipe original pegou todas essas influências, juntou com temas aparentes em filmes como o Alien original, e transformou algo que poderia ser genérico em um jogo que até hoje é referência como um grande terror da sétima geração de consoles, e agora, da nona.

Dead Space
Imagem Divulgação

Começo do caos

Sendo assim, a preocupação de Dead Space em mostrar algo além do óbvio fica aparente com rapidez. O primeiro capítulo do jogo pura e simplesmente apresentações: Isaac Clarke, engenheiro chefe na Concordance Extraction Corporation (CEC) responde a um pedido de socorro emitido pela nave USG Ishimura com os companheiros de empresa Kendra Daniels, especialista em programação, e Zach Hammond, oficial de segurança.

Em seguida, aprendemos que a Ishimura é uma nave “quebradora de planetas”. Ou seja, seu propósito empresarial é viajar pelo espaço procurando por planetas ricos em minérios completamente extinguidos na Terra e conectar lasers gigantes que puxam pedaços do planeta para mineração.

Claro, como um terror espacial que se preza, as coisas vão ladeira abaixo quase que imediatamente, pois a USG Kellion se arrebenta na doca da Ishimura. Então, nossos protagonistas, ameaçadoramente, acreditam que em 48 horas eles conseguem, com ajuda da tripulação da Ishimura, arrumar todos os problemas e partir.

Um tanto familiar

Ao adentrar o hall de entrada, encontramos um panfleto da CEC explicando que por mais que a prática de “quebra de planetas” seja bastante perigosa para os mineradores envolvidos, quebrar planetas em pedaços desestabiliza sistemas solares inteiros. Ou seja, de maneira geral a empresa arregaça a galáxia, algo de suma importância para a humanidade, pois nós não contamos com recursos suficientes para sustentar bilhões de pessoas. Hmm… onde será que eu já ouvi essa justificativa antes?

Claro que não temos muito tempo pra pensar nisso: dentro dos próximos 5 minutos uma monstruosidade mutante com lâminas no lugar dos braços vai abrir nosso piloto de fora a fora. Então, naturalmente, nosso protagonista precisará correr feito um maluco pelos corredores escuros da nave.

Eventualmente, você põe as mãos na Plasma Cutter, a melhor picotadora de monstros de todos os tempos. Mesmo assim, o restante do primeiro capítulo é sobre o medo visceral e imediato, sobre os monstros que pulam do sistema de ventilação, gritam na sua cara, e patrulham por enormes complexos industriais sem luz.

Dead Space
Imagem Divulgação

Background de Dead Space

Somente no capítulo 2 começamos a nos deparar com as motivações e construções do universo de Dead Space. O objetivo é encontrar o capitão da nave e sua armadura para conseguir novas permissões e acessar novas áreas da nave. Sendo assim, buscando pelo corpo (porque claro que ele já virou presunto), nós descobrimos que tanto ele quanto vários oficiais da nave fazem parte de uma religião chamada Unitologia.

No início não sabemos muito sobre isso, apenas que é uma religião que cresceu exponencialmente nos anos de míngua do futuro espacial da humanidade. Além disso, sabemos que ela possui muita gente muito rica, e que sua crença gira em torno de um tal de “Marcador”. Este “Marcador” é um obelisco que aparentemente fará com que a humanidade “se torne inteira novamente”, o que quer que isso signifique. Um desses Marcadores está, aparentemente, dentro da nave, recolhido do planeta Aegis VII que a Ishimura quebrou e está orbitando neste momento.

Então, os capítulos passam a alternar entre as ações destes Unitologistas, que levaram ao nosso atual imbróglio, e as tentativas de sobreviver do pessoal que trabalha na engenharia — que mantém a nave funcionando — e os mineradores — que quebram pedra nos fundos mais inóspitos da nave.

Em seguida, o capítulo 3 é inteiramente voltado para os passos do engenheiro-chefe Jacob Temple dentro da área dos motores e combustíveis da nave. Sendo assim, acompanhamos a descoberta de que alguém de dentro da nave sabotou os motores após a chegada do Marcador, impedindo a tripulação de escapar da mutação. Já o capítulo 5 retorna aos Unitologistas, quando encontramos o Doutor Challus Mercer. No fim, ele ficou pirado na Unitologia e agora, com pesquisas de regeneração celular, criou um monstro que cresce os braços de volta depois que você o picota. Diversão!

DeadSpace
Imagem Divulgação

Terror das classes

Alguns dos logs mais assustadores estão no capítulo 7, quando Isaac chega no setor de mineração e acompanha a luta dos mineradores. Eles tentam montar barricadas, fecham o setor, e tentam a todo custo sobreviver à onda de mutações. Um desses logs em específico nos choca bastante, pois mostra um dos mineradores que, após uma falha do coletivo em impedir a entrada dos bichos escrotos, resolve que a saída para não machucar ninguém após ser infectado é cortar os próprios braços e pernas fora com suas ferramentas de mineração. Enfim, é um log difícil de ouvir.

Contudo, essa dualidade de acompanhar tanto os religiosos em posição de poder quanto os trabalhadores do chão da mina chega ao ápice no capítulo 10. Visualmente, é o capítulo mais apocalíptico de todos, com rituais da Unitologia e corpos espalhados por todo lado. Além disso, tem tentáculos criados pelo Marcador segurando partes inteiras da nave, e, claro, uma enorme batalha contra necromorfos na sala onde o Marcador está. Inclusive, a batalha é cheia de efeitos de distorção e símbolos estranhos aparecendo na tela enquanto você luta para sobreviver.

De qualquer forma, o interessante para nossa análise neste capítulo é que Isaac explora as várias alas dos decks de estadia, e é nítido no design que cada setor reflete a sua classe. Por exemplo, a ala dos mineradores é bastante simples, beliches compactas com pouca iluminação onde os trabalhadores têm que compartilhar tudo. Enquanto isso, a ala dos oficiais (que são Unitologistas, para nossa informação) é luxuosa, tapetada em vermelho, com camas king-size e ventilação perfeita. Ainda mais, o capitão da nave, claro, tem uma mesa para louvar ao Marcador, e um log dele nos mostra claramente a motivação: ele será compensado ricamente pelos Unitologistas para levar a nave ao sistema Aegis e desenterrar esse Marcador.

Dead Space
Imagem Divulgação

Controle pela Fé

E aí é que outras revelações são mais interessantes. Você vê, a Unitologia surgiu quando uma equipe de pesquisadores, liderada pelo cientista Michael Altman, encontrou um destes Marcadores na Terra numa escavação. Então, ao conduzir sua pesquisa, ele notou que este Marcador era, de alguma forma, um tipo de vida senciente que se reproduz através de um processo infeccioso que recombina tecido celular morto em novas formas. Seu objetivo é juntar células mortas o suficiente para se transformar em uma nova forma misteriosa, num evento que chamou de “Convergência”.

O cientista chegou a essa conclusão porque sua equipe se transformou em monstros mutantes que criavam outros corpos mortos para virar mais monstros mutantes, e ele conseguiu escapar de alguma forma.

No entanto, a CEC viu sua pesquisa e seu aviso sobre a periculosidade da coisa como uma oportunidade. Portanto, percebendo o clima de desespero e solidão que, bem, o capitalismo gera neste futuro distópico, a empresa criou uma reinterpretação da pesquisa de Altman.

Para tal, transformou esses Marcadores em símbolos míticos que levariam a humanidade a uma nova era onde todos nós seríamos unificados em Convergência. Então, é claro, a CEC vendeu essa ideia para a classe trabalhadora. O que os superiores deixam de contar para sua congregação é que essa unificação não será espiritual no reino dos céus, mas sim física. Ou seja, a própria carne da classe trabalhadora será recombinada como monstros mutantes para interesse dos ricos.

Deadspace
Imagem Divulgação

Qualidade Atemporal

Tá achando que eu li Marx demais e tô viajando? Esse tema é tão claramente representado que até mesmo a jogabilidade deixa isso explícito. Afinal, o jogo apresenta Isaac como um engenheiro, profissão essa que vemos com prestígio nos dias atuais. No entanto, a missão dele na Ishimura está mais para técnico de reparos, e é isso que você mais faz no jogo.

Além disso, a grande maioria dos objetivos se resume em chegar em certo setor da nave e consertar alguma coisa, seja os motores, seja a antena de comunicação, seja o sistema de defesa contra asteroides. Ainda mais, as armas que Isaac usa nessa empreitada não são armas convencionais, militares, e sim equipamentos de manutenção. Por exemplo, um cortador de metal, uma serra, uma solda, um maçarico. A única arma que é diretamente militarizada é o Rifle de Pulso, e por coincidência (talvez) ela é a arma mais fraca do jogo no remake.

Sendo assim, a grande diferença entre um terror fraco e um terror clássico é a gama temática representada por ele. Apesar de ter muitas coisas derivativas de outros filmes e jogos, ele sobrevive ao teste do tempo, pois trabalha muito bem seu núcleo temático. Afinal, diz algo sobre luta de classes e religião, provocando um medo muito mais existencial do que os simples jumpscares dos necromorfos saindo da ventilação podem provocar.

É por isso que o remake de Dead Space virou sua versão definitiva, enquanto o tempo fará outros jogos mais medíocres como The Callisto Protocol caírem no esquecimento.