Seis anos depois de sua estreia em fevereiro de 2017, Chi no Wadachi chegou à sua conclusão, a história das trilhas de sangue percorridas por Seiichi Osabe. Contrário às expectativas durante a reta final do mangá, o célebre autor de Aku no Hana e Happiness conseguiu mais uma vez entregar um final esplêndido e neste Review eu gostaria de esboçar com vocês algumas razões de Chi no Wadachi ser provavelmente a obra-prima de Shuuzou Oshimi.
Uma semi biografia
Já tivemos um Primeiro Gole lá atrás em 2018, escrito pela Fabi, que dá uma sinopse geral de Chi no Wadachi. O mangá é um thriller psicológico que conta a relação repleta de tensão entre Seiko e seu filho, Seiichi.
Assim, os primeiros capítulos mostram uma relação mãe e filho marcada pelo afeto descomunal e pela superproteção. Inclusive, superproteção esta que culmina num evento fatídico que torna os dois cúmplices dde uma mentira.
Então, por manter esta mentira de pé pelo bem estar de sua mãe, vemos como Seiichi sofre uma série de manipulações e chantagens emocionais. Isso o priva de sua própria individualidade e semeia nele uma série de traumas.
É da natureza de um Review que se comente sua história à fundo.
Então HAVERÃO SPOILERS
Mesno assim, a intenção desse texto é mais tópica do que cronológica.
A tentativa de homicídio contra Shigeru e o suspense gerado enquanto Seiichi tenta acobertar o crime da mãe foi apenas o jeito, muito bem bolado diga-se de passagem, que Oshimi conseguiu para contar uma história em certa medida pessoal, uma história de alguém que não pôde nascer num lar saudável e ter uma relação saudável com sua mãe.
Portanto, Chi no Wadachi carrega elementos autobiográficos em sua narrativa, o que ajuda a entender certos paineis e páginas confusas e incompreensíveis a princípio. A confusão é atenuada quando enxergamos o mangá de Shuuzou Oshimi como uma exposição experimental dos seus sentimentos e tentamos ler o mangá menos com suas palavras e mais com suas imagens.
Esse ponto é de extrema importância e vou frisá-lo mais uma vez: Chi no Wadachi não é um mangá de diálogos.
Por outro lado, sua riqueza iconográfica é inigualável e todos que pausarem para observar a arte do mangá e as expressões ali contidas vão se deparar com ouro. Não que não tenha diálogos marcantes no momento devido; eles só não são o foco do estilo do autor, assumidamente ruim com as palavras.
Além disso, no posfácio de Okaeri Alice, outro mangá recentemente concluído, vemos um Shuuzou angustiado e derrotado frente à sua incapacidade de transmitir exatamente os seus sentimentos, contentando-se com suas tentativas desconexas.
Voltando ao caráter autobiográfico de seus mangás, Shuuzou menciona nesse mesmo posfácio uma gagueira que ele desenvolveu quando criança. Inclusive, gagueira essa que aparece momentaneamente em Chi no Wadachi, nascida do estresse submetido ao pequeno Seiichi graças à atitude controladora de sua mãe.
Fukishi e a tentativa de independência
A história de Chi no Wadachi é centrada em poucos personagens; temos Seiichi, seus pais e uma menina, o primeiro amor de Seiichi: Fukishi.
Ela é aquele encontro fatídico que acontece pelo menos uma vez na vida de todos nós, de onde começos a nos individualizar como pessoas. O primeiro palpitar de coração, a primeira falha respiratória, os primeiros sentimentos incapazes de surgir por meio de nossos pais (e que quase sempre o vivenciamos alheios a eles), o vislumbre da saída do ninho.
Dela não sabemos muita coisa, salvo de que ela tem problemas com o pai violento. Por qualquer razão que seja, Fukishi toma interesse em Seiichi, rejeitando investidas de outros garotos para poder passar um tempo com o menino pouco notável. Seus porquês ficam à imaginação de quem lê.
Relação sincera
Interessa ao mangá mostrar a relação dos dois como um tentativa mútua de independência de seus lares. É com a Fukishi que temos, depois de apenas trinta capítulos, um momento de leveza no mangá, sem aquele ar sinistro envolto pela vigilância tenebrosa de Seiko.
Também, é no quarto da Fukishi onde Seiichi pode saber pela primeira vez na vida o calor de um afeto genuíno. Nesse mesmo lugar é onde ele pode se explodir de prazer pela primeira vez e desligar a imagem de sua mãe da mente (os dois não chegam a transar, calma, é algo mais puro e fisiológico que isso).
Assim, há um desenvolvimento bacana em jogo e que te faz torcer pelo melhor na vida dos dois.
Porém, nada nas obras de Shuuzou Oshimi é tão simples assim e a tentativa fica apenas nisso. Ela é frustrada pelo controle maciço de Seiko na vida de seu filho.
Enquanto escrevo isto, me dei conta de um dos porquês do enredo de Chi no Wadachi ter me cativado tanto. Não, não seria pela minha própria relação com a minha mãe, a quem muito amo.
Possível inspiração?
Antes disso, a estrutura narrativa de expor a vida de um homem que tem a sua vida, seu futuro e sua personalidade arruinado pela sua progenitora lembra demais a história do Dr. Octopus. Um clássico vilão do Homem Aranha, que apareceu no Brasil no Homem Aranha Anual número 6 e que por acaso tive a chance de ler quando criança. Ali fui marcado pela história do menino Octavius, retraído e vulnerável, sujeito às agressões verbais do pai e à superproteção materna.
Assim como Seiichi tem uma perspectiva de vida ao lado da Fukishi, Otto e Mary Alice vislumbram um futuro juntos. Porém, ambos os futuros são interditados pelo controle de duas mães que prendem sua prole.
É muito fácil inventar conexões pós-fato, mas é razoável supor que o teor da história de Chi no Wadachi tenha apelado a uma certa nostalgia de uma criança que foi bastante fã do Homem Aranha e que foi bem impactado pela história de um vilão desesperado pela busca da cura de uma doença que afligia seu antigo amor.
Preso pelo sangue
De volta ao ninho que é vetada a saída, Seiko afunda suas garras na mente de Seiichi, cometendo uma série de chantagens emocionais e violências psicológicas, fazendo o garoto jurar lealdade até mesmo às suas mentiras. Ela vai ao extremo de tentar manipular as memórias da tentativa de homicídio de seu sobrinho.
Paradoxalmente, Seiko parece animada em ter suas mentiras expostas e ver tudo à sua volta desmoronar, como um jeito de… se libertar? Mas se libertar de que?
Não sabemos ainda os detalhes desse comportamente antes da Seiko convenientemente abandonar Seiichi à própria sorte, abandonando a ele, a seu marido e à sua própria maternidade.
No final da história de suspense iniciada com uma trilha em família que termina em sangue, Chi no Wadachi embarca num segundo momento. Desta vez, para virar uma história impactante sobre trauma e os jeitos de com ela lidar.
Trauma e Abandono
Enquanto lia Chi no Wadachi, tive o prazer de fazer essa leitura acompanhado de uma pessoa igualmente fissurada pelo impacto emocional que esse mangá é capaz de gerar.
Há em seu blog uma lista extensa de textos que versam sobre seus simbolismos, suas possíveis metáforas, perfis psicológicos dos personagens, muito mais desenvolvidos e aprofundados do que este texto se pretende ser. Especificamente no texto sobre Seiichi, é focada a questão do PTSD, ou Estresse Pós-Traumático.
Além disso, o canal do Livedoor News no YouTube tem até uma série interessantíssima de cinco capítulos com o psiquiatra Yasufumi Nakoshi analizando os três primeiros volumes de Chi no Wadachi de um ponto de vista clínico. No entanto, precisão de avaliações psicológicas à parte, é possível marcar o momento exato em que Seiichi é plenamente quebrado em pedaços, logo antes do primeiro timeskip.
Precisamos entender primeiro o que aconteceu.
Quem chegou até aqui e ainda assim continua lendo com certeza não vai se importar com os SPOILERS que já foram mais do que avisados a essa altura, então vamos lá.
Fratura
Seiichi caminha numa trilha com sua família e desvia dela com o seu primo pentelho, Shigeru, para um penhasco. Depois de uma brincadeira de extremo mal gosto e que pode matar alguém, Seiko, enfurecida à sua maneira, mostra por que é que não se deve brincar em um penhasco. Assim, joga seu sobrinho de lá, que acaba internado e sequelado.
Depois de muito tempo, o cerco se fecha e a polícia interroga mãe e filho. Nesse interrogatório, pela primeira vez na vida o Seiichi pode dizer o que vem à mente. É o trabalho de um detetive buscar a verdade e levá-la à justiça. Porém, não deixa de ser heróico de sua parte transformar um interrogatório num profundo momento de autodescobrimento para o garoto.
Como dito antes, Chi no Wadachi não é uma obra de diálogos. Antes, ela é iconográfica ao extremo. No entanto, se você precisa de um momento em letras para entender o que se passa com o garoto, e o interrogatório é essa cena que você procura.
Nas palavras do detetive, a invasão da Seiko na mente de seu filho fez com que ela passasse a ser tudo na vida do Seiichi. Ele já não tinha mais um Eu além daquele decidido por sua mãe, confundindo-os. Seiicho é Seiko e vice-versa, ao menos na mente do Seiichi.
Então, talvez tenha sido por isso que ele “terminou” o serviço da mãe e matou o Shigeru logo após ele ter recebido alta do hospital. Seja como for, e como dito pelo próprio detetive, “uma vez que você não tiver mais sua mãe, você não terá mais um Eu”.
Abandono
E é o que acontece quando Seiko anuncia no tribunal que ela não será mais mãe. Ou melhor, que ela nunca mais fingirá ser mãe, já que o Seiichi foi mais uma tentativa frustrada de se sentir completa. Uma vez que isso evidentemente falhou, ela abandona a farsa de seu casamento e a farsa de sua maternidade.
A devastação do acontecimento na mente de Seiichi é inigualável, coisa que só a arte perturbadora do Shuuzou é capaz de transmitir. Ele é levado ao reformatório, solto de lá ao completar 18 anos e então… a vida segue, vazia e apática. Com isso, Seiichi vai vivendo um dia de cada vez como uma casaca de si mesmo, sob os esforços de seu pai que faz de tudo para poder fazer qualquer coisa, naquilo que sua insistente impotência presente desde os primeiros capítulos lhe permite.
Então, vamos tirar um minuto para voltarmos a atenção aos pais do Seiichi, para entendermos algo crucial para o mangá.
Ichiro e Seiko
Seiichi passou boa parte da vida assombrado pelo fantasma de Shigeru. Junto a isso, o abandono da mãe no momento de maior necessidade, nos faz indagar como é que Seiichi continua vivo.
A partir disso saio em defesa de um personagem que sim, é falho, mas que no geral sinto-o bem injustiçado, que é o Ichiro, pai de Seiichi.
Poeta frustrado, Ichiro sempre demonstrou dificuldades em se aproximar de Seiko, apesar de casados, e do emocional de seu filho. Nesse sentido, ele não foi o melhor dos pais. Porém, uma coisa crucial ele soube fazer: assumir suas responsabilidades.
Afinal, quando Seiichi surta no tribunal e tudo vira um grande borrão à sua volta e Seiko o abandona publicamente, podemos ler vagamente Ichiro dizendo ao juiz que ele daria sua vida pelo filho e cuida dele o melhor que pode. Também, há o fato de que Ichiro arcou sozinho com as indenizações aos pais de Shigeru, seus próprios irmãos. Assim, endividandou-se aqui e ali para terminar de pagar os 80 milhões de ienes devidos, tudo para que seu filho não precisasse se preocupar com nada.
Amor paterno
Por quase vinte anos, o Ichiro é o único elo significante na vida do Seiichi, que vive uma vida completamente dissociada desde o tribunal. Parece insignificante, mas muitas vezes o melhor que podemos fazer na vida de alguém é simplesmente estar ali ao lado.
Apesar de esvaziado, Seiichi é capaz de reconhecer a validez da ação e agradece abertamente ao pai por “fingir que não fez o que fez por todos esses anos”. “O fato de você não ter me abandonado, a despeito do que eu sou, é mais que o suficiente”. Com essas palavras que vemos como um mínimo vindo de um pai pode significar muito para quem não tem mais nada.
Tanto é que, com a morte de Ichiro, Seiichi sente-se livre de suas obrigações neste mundo. Sem ter ninguém mais para olhar por ele, o homem de 36 anos pode finalmente abraçar a morte de braços abertos. Sem primeiro atender a um último pedido: repousar os ossos do pai no túmulo da família em sua cidade natal.
“Destino” não é uma palavra de significado forte nas obras de Oshimi. A vida nessa obra de ficção é retratada com o mesmo grau de banalidade que pode estar submetida à vida de qualquer um de nós, seres banais e sem nenhum final feliz ou épico predestinado.
Cemitério
Contudo, para evitar a monotonia e aliviar um pouco a morbidez de seu trabalho, Seiichi recebe dois impactos nesse momento. Na verdade, o primeiro impacto soa mais como uma facada. Ao chegar no cemitério, Seiichi é vislumbrado com a presença de Fukishi, agora casada e com duas filhas, uma delas de 14 anos e a exata mesma aparência de seu primeiro amor quando os dois se aproximaram pela primeira vez.
O fato dessa cena se passar num cemitério encaixa feito uma luva, porque ali é a morte e o enterro em definitivo de qualquer prospecto de final feliz. Ou seja, como alguém que não só recebe uma facada ao estomago como também tem sal grosso enfiado na ferida.
Mas o destino tem ordens maiores para Seiichi. Ou melhor, Shuuzou Oshimi tem ordens maiores. O protagonista do mangá poderia ter simplesmente partido deste mundo a partir daí e quem poderia culpá-lo? De qualquer forma, não é essa a história que o mangaká quer contar.
Reencontro
Em sua reta final, Seiichi é posto frente à frente de volta com sua mãe, idosa, fragilizada e indigente. Posto frente à pressão das pessoas à sua volta em cuidar de sua mãe, Seiichi volta ao convívio com Seiko, mas com as posições invertidas. A velhice é uma regressão à infância, nós nascemos de fraldas e morremos de fraldas. Só que temos um adendo aí: Seiichi não é capaz de assimilar sua mãe como a idosa que ela é.
Sendo o trauma uma cisão não só psicológica, mas também temporal, Seiichi enxerga em sua mente o mesmo rosto jovial e bonito que o controlou por toda a vida. Assim, será o convívio que o forçará a sair de um estado dissociativo que ele vem vivendo desde o dia do abandono e fará com que ele enxergue a mãe sob novas luzes: como uma criança emocionalmente perdida e como uma idosa que tem o fim diante de si.
É uma experiência desagradável, afinal ele está revivendo uma série de traumas ao reencontrar sua mãe. Porém, no calor das emoções Seiichi entende que ela não vale mais a pena tanto dispêndio e no passar de um tufão, mãe e filho se permitem conhecer um ao outro.
Femme Fatale
Se você leu Aku no Hana até o final, perceberá como que a Seiko repete o mesmo padrão de personagem que a Nakamura. Uma mulher que desde a primeira infância se sentia apática a tudo e a todos, desenvolvendo comportamentos nocivos à si e ao seu redor. Seiko não nasceu num lar funcional, o que é de se esperar de uma pessoa com o seu perfil.
Além disso, seu desejo de ver tudo queimar, imaginando todas as pessoas de sua vida estiradas e mortas é uma Nakamura 2.0, sem tirar nem pôr. A diferença é que agora vemos o que a maternidade implica numa pessoa desse calibre; nada de bom para a criança, evidentemente.
Vínculo traumático e a possibilidade de um amanhã
Deu pra ver muita gente descontente com Chi no Wadachi explorando o passado de Seiko, como se aquilo fosse alguma forma justificasse as ações de uma péssima mãe. Dá pra relevar esse tipo de comentário se imaginarmos que parte do público que lê o mangá também tenha vivido ou viva situação semelhante à do Seiichi, de um jeito ou de outro. Mesmo assim, é importantíssimo para o rapaz esse momento de conhecimento mútuo com a mãe no passar do tufão.
Infância de Seiko
Temos uma fagulha de felicidade na primeira infância de Seiko com o avô, por quem ela nutre boas lembranças, ainda que vagas. Mas isso muda muito rápido quando sua mãe, que detesta o avô, se muda de casa e passa a ter uma segunda filha, Etsuko.
A partir daí, como é comum em muitas famílias, todo o amor vai para o caçula e toda a dor vai para o mais velho. A mãe de Seiko, que já não tinha a melhor das afeições pela filha, tem uma piora ao descobrir a traição do marido. Assim, as coisas seguem até finalmente Seiko sair de casa, interessada numa trupe de teatro na qual conhece Ichiro.
O começo de sua vida com Ichiro é de algum modo feliz. Apesar dos amigos do teatro, Ichiro vivia em poesia, de tal maneira que ele demorou a entrar e concluir sua faculdade.
No entanto, preso a bloqueios criativos e com as pressões da vida adulta batendo à porta, Ichiro decide largar as artes, assumir o negócio da família e pedir Seiko em casamento. Com a ideia de uma vida comum e sem muita agência própria, Seiko simplesmente segue num barco sem leme, aceita a proposta e a luz que se acendeu no começou de sua vida com o teatro simplesmete desapareceu.
Contudo, por sugestão de sua cunhada que havia pouco dado a luz a Shigeru, Seiko tenta na maternidade um caminho para se sentir completa e menos só. A ideia funciona maravilhosamente bem no começo. Afinal, o afeto genuíno que ela sente pela pequenina criança que saiu como uma extensão de si é inegável. O problema volta quando ela simplesmente enjoa daquilo, principalmente quando a criança começa a desenvolver suas primeiras noções de Eu e a Seiko mais uma vez se sente desconectada.
Entendimento
Quando Seiichi finalmente entende que Seiko perpertuou um ciclo vicioso de morte, que ela havia sido morta durante a infância e por sua vez matou outra criança ao tornar-se uma adulta desfuncional, isso não sara suas feridas, incuráveis a essa altura.
Porém, o entendimento, um bem em si mesmo, liberta Seiichi e ele consegue algum grau de agência na vida. Ele se torna capaz de arrumar sua própria casa, consegue parar de beber e a leitura, esse hábito tão redentor, fixa-se como uma nova forma de vida que o acompanhará pelo resto de seus dias.
Assim, a ideia da morte o abandona, Shigeru se despede de seus sonhos e um amanhã torna-se possível para Seiichi, que teve todas as portas de sua vida fechadas desde o nascimento por quem deveria protege-lo e apoia-lo.
Como uma última etapa dessa relação tão distorcida de mãe e filho, Seiichi passa a cuidar de Seiko nos seus últimos dias, depois de cair (ou ser empurrada?) de uma escadaria e atingir a invalidez.
Cuidado sem amor
É uma parte particularmente bem mórbida no caso desses dois, mas é um estágio eventual de nossas vidas. Um dia nossos pais cuidaram de nós. Amanhã será a nossa vez, de um jeito ou de outro. Só que nem todos farão isso por amor. Afinal, Seiichi não o faz.
Ele não é violento com sua mãe, é cuidadoso, mas não permitirá que ela escape assim tão facilmente da vida. Então, a observa intensamente enquanto a vida vai esvaindo de si. Ao final da história Seiichi consegue se vingar de Seiko, de uma forma extremamente sutil, mas consegue.
Às vésperas do último suspiro, uma última conversa, quase alucinatória, entre uma Seiko mais uma vez jovem (ainda que com outro desing) e um Seiichi criança, num último confroto onde cada um troca farpas com o outro e dão adeus.
Conclusão: O rosto de mamãe
“De repente, me peguei pensando… faz quantos anos desde a última vez que me lembrei de mamãe?”
Chi no Wadachi começa como uma história de suspense psicológico. É um mangá que conta em detalhes o processo de destruição de uma criança pela superproteção e abuso de uma mãe controladora e narcisista.
Típico dos trabalhos de Shuuzou Oshimi, ele é um mangaká que te faz passar pelo inferno. Então, somente quando você estiver no pior estado possível é que ele irá te puxar pra cima, para o mundo dos vivos.
A mensagem central de seus trabalhos, pelo menos nos que eu tive o prazer de ler até hoje como Happiness e Aku no Hana, lembra a carta que o Conde de Montecristo deixa para Maximilian Morel no final do livro. Nela, ele lembra que “é preciso saber o que é morrer para apreciar as alegrias da vida”.
Mesmo com o fim mórbido, o final nos agracia com mais um timeskip. Com isso, vemos um Seiichi idoso, vivendo um dia de cada vez entre idas e vindas à biblioteca, de onigiri à mão (seu primeiro presente da única pessoa que o amou…) e capaz de apreciar a beleza tão universal que a só um céu límpido é capaz de nos agraciar.
Aos 45 do segundo tempo, contra todas as minhas expectativas e com um tato iconográfico magnífico, Shuuzou Oshimi nos mostrou que mesmo o mais forte dos traumas é tolerável com um dia de cada vez. Isso nem precisa ficar restrito a traumas familiares, não. Na verdade, traumas de todo o tipo. Não com o passar de dias, nem meses, mas de anos, todas as memórias eventualmente viram um borrão. Assim, ao final da trilha de sangue, mora a liberdade.
A publicação
Chi no Wadachi acabou amontoando 17 volumes, quase ao mesmo tempo de Okaeri Alice. Foi premiado no início deste ano na categoria “Melhor Série” no Festival Internacional de Angoulême na França e não gratuitamente. Apesar de ter se consagrado pela criação de Aku no Hana, que é sem sombra de dúvida uma obra excepcional com um dos finais mais louváveis que já tive o prazer de ler, Chi no Wadachi parece ajudar a exorcizar alguns demônios da vida do autor. Ao mesmo tempo, ler o mangá por completo ajuda a exorcizar alguns de nossos próprios demônios.
Portanto, é uma leitura terapêutica, apesar de parecer ser tudo menos saudável. É só impressão, juro a vocês.
Se a NewPop seguir a tendência de publicar as obras de Shuuzou Oshimi como vêm publicando, anunciando recentemente a publicação de Inside Mari, eventualmente chegará a vez de Chi no Wadachi ser publicado no Brasil. Com isso, serei obrigado a colecionar um mangá pela primeira vez desde Kingdom Hearts (tem tempo né…)
É lógico que Chi no Wadachi leva 5 suquinhos. Enquanto a próxima obra do mestre, que já está no forno, não sai, fica o aviso: sua obra-prima já mora entre nós.