Figuras deformadas caminhando em busca de qualquer sinal de vida animal pela sua ânsia de consumir carne, é sem dúvida o tema mais presente nos filmes, jogos e séries no estilo survival. Esse cenário pós-apocalíptico ameaçado por algum ser ou causa inerente, representa os mortos-vivos como a maior ameaça – a princípio – dos sobreviventes desta distopia. Condição que se altera com o decorrer da trama ao submeter os seres humanos como mais perigosos do que o próprio caos que os cercam, marcados pela sua sede de subsistência onde tudo é válido para sobreviver.

Como demonstra The Walking Dead, uma série de televisão norte-americana baseada na história em quadrinhos escrita por Robert Kirkman, ambientada em um mundo tomado por walkers, mortos-vivos de origem desconhecida que anseiam por comer carne, mas que com o passar dos capítulos, mesmo com o terror que representam deixam de ser a principal ameaça, se voltando para outros grupos de sobreviventes com ideais distintos.

Essa desconfiança pode ser entendida como decorrência de uma sociedade corrompida pelo caos, em que a abolição de leis, normas e órgãos fiscalizadores encadeiam a desordem na relação entre grupos. E fomentada pela escassez de comida, armas e abrigo, por muitas vezes é apenas resolvida através do conflito.

Na sexta temporada de The Walking Dead somos apresentados a Negan, um dos até então antagonistas da série que decreta normas a toda comunidade bem estabelecida que encontra, onde devem fornecer 50% de todos os seus mantimentos ao seu grupo, os Salvadores. Sendo qualquer indício de intolerância punido cruelmente.

O poder antes vinculado à posse de bens e propriedades valiosas em uma sociedade pautada no consumo, agora é medido por dois principais recursos de sobrevivência, o alimento (subsistência) e as armas (combate), se afastando do sentido de valor e dando lugar à necessidade. Dois mediadores capazes de definir a hierarquização dos integrantes, sendo aquele que possui mais habilidades com as armas e consequentemente com a obtenção de alimentos, quem impõe as regras e ações do grupo.

Essa postura de vantagem em meio à desordem faz com que os sobreviventes menos adaptados se veiculem a esses líderes, obedecendo suas vontades em troca de proteção e alimento. E a partir de premissas pessoais, formulam normas que criam crenças coletivas sobre o que é correto e em quem e no que se deve acreditar.

Como a insanidade de Alfa, um dos personagens mais terríveis da série, que usa a força e manipulação através do medo para ter seus objetivos saciados. O seu comportamento do “não temer”, sendo capaz de ensinar o caminho para conviver entre os mortos, constitui credibilidade a suas ideias, fazendo com que seu bando, mesmo que muitas vezes torturado por motivos insignificantes, a idolatre. Já que, apesar de sua postura hostil que jamais seria aceita em normas sociais do passado, a promessa de sobrevivência e discursos convincentes a torna a salvação.

Concluindo que qualquer tentativa de reconstruir a ordem em meio a um cenário como este, estabelece novos parâmetros de comportamento. Sendo um desafio para os grupos mais centrados a ordem, sobreviverem enquanto enfrentam a dualidade dos conflitos do próprio caos, mostrando-se mutáveis a sobrevivência e a reações brutais.


Referências

CASSARO, Valmir Moratelli. “Narrativas do Caos nas séries de TV: uma análise da distopia em narrativas de ficção seriada”. Khronos, Revista de História da Ciência, nº 9, pp. 1-16. 2020. Disponível em <http://re-vistas.usp.br/khronos>.

PELBART, Peter Pál. Mutações Contemporâneas. In: Próximo Ato: Questões da Teatralidade Contemporânea, coord. Fátima Saadi, Silvana Garcia. São Paulo: Itaú Cultural, 2008, p. 34.

ROCHA, Everardo. Culpa e prazer: imagens do consumo na cultura de massa. Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo: Vol. 3, n. 2, Mar. 2005, p. 124.