O trabalho mais recente da diretora Naoko Yamada, esta que deixou uma marca de ferro na história dos animes com Koe no Katachi, consegue em The Colors Within (Kimi no Iro, daqui em diante) o feito típico de suas produções.
O filme cativa, encanta, te conforta e te abraça, como se você, espectador e espectadora, fizesse parte daquele universo. O lar que deu luz ao filme foi a Science Saru, estúdio que abrigou a diretora depois de sua saída da Kyoto Animation e proporcionou joias como DanDaDan, Eizouken e Heike Monogatari.
Kimi no Iro conta a história de Totsuko, uma menina imaginativa no sentido mais pleno do termo. Ela consegue “sentir” a cor das pessoas, que varia de acordo com suas personalidades, numa mistura de tato e visão, quase como sinestesia. Isso afeta sua própria maneira de se expressar, menos com abstrações verbais e mais com descrições de cores. Por isso, tal característica única a deixa um pouco mais estranha que as demais meninas, o que não prejudica de forma severa sua convivência na escola.

Uma banda de ocasião
No filme, também temos seus futuros colegas de banda: Rui e Kimi. Essa última (alvo da admiração de Totsuko) rende um trocadilho feliz ao nome do filme “Kimi no Iro”. Afinal, a um só tempo, podemos ler como “A Sua Cor” ou “A Cor da Kimi”.
O azul claro da cor do céu num dia de verão encanta Totsuko enquanto ela está prestes a levar uma bolada na cara durante uma partida de queimada (encanto esse erroneamente lido por alguns como um rascunho de yuri no filme). O acidente choca Kimi, que sem querer faz o nariz de Totsuko sangrar. Ela, que já não conseguia se encaixar na escola, acaba largando as aulas de vez.

FInalemnte, o último personagem desse trio é Rui, um estudante aspirante a médico (carreira de longa presença em sua família, dona de uma clínica numa ilha minúscula). Nutrindo um amor secreto e quase proíbido pela música, colecionando eletrônicos e criando música numa igreja abandonada, Rui concilia os deveres familiares com sua paixão secreta.
Então, como num acaso feliz, Rui visita a mesma livraria onde Kimi passou a trabalhar depois de ter largado a escola. Os destinos dos três se entrelaçam, com Totsuko determinada a juntar o azul praiesco de Kimi com o verde vívido e primaveril de Rui, inventando de sopetão uma banda como pretexto para unir os três.

A música, que já era uma paixão em Rui e uma curiosidade em Kimi (que aprendia a tocar guitarra), virou um novo gosto para Totsuko. Ela não desgostava da ideia, mas não tinha certeza do que aquilo lhe podia significar.
Assim, no mar de dúvidas, a imagem do Cristo crucificado servia de guia e norte para a menina em processo de auto-descoberta durante suas orações.
Aqui, preciso pedir licença à leitora e ao leitor para um comentário sobre o lugar do convento no filme. Não tão marginal quanto se pensa, mas que pode ser meio desafiador de assimilar.
O convento e seu lugar
O pensamento que quero compartilhar com vocês nesta seção não é de forma alguma senão uma interpretação. Tenho certeza que o uso de uma escola católica como o cenário do filme não possui significados maiores na obra de Naoko Yamada, se comparado ao foco principal dado à amizade entre Totsuko, Kimi e Rui.
Porém, a forma como esse cenário é trabalhado possui fortes implicações não-intencionais sobre como recebemos e digerimos a cultura pop no ocidente. É sobre estas que preciso falar antes de dar sentido ao papel da fé de Totsuko ao longo do filme.
Contexto
O cenário da obra é bem típico. Adolescentes estabelecendo suas amizades e se descobrindo através da música. Porém, aqui mora um twist bem atípico: o palco desse enredo, uma escola feminina católica, é um lugar bem fora da curva no universo da cultura pop.
Salvo quando tratado de forma caricata num Orb da vida, ou de forma descaradamente caricata em grandes produções de gigantes do streaming, o mundo cristão tende a ser a antítese de nosso fazer artístico. Portanto, Kimi no Iro é a exceção feliz que prova a regra.
O filme não chega nem perto de ser proselitista. O convento, as freiras e as preces passam longe de ser o foco do que Naoko Yamada pretende apresentar. Mas, sem querer querendo, ela acaba realizando algo genuinamente transgressor, num mundo onde a transgressão pela transgressão é a norma dos espaços de criação e produção cultural.
Em Kimi no Iro, o convento é apenas mais um lugar como qualquer outro. Nele, uma comunidade de moças tecela seus espaços de sociabilidade, como em qualquer outra escola. Aqui, elas são educadas e instruídas no processo tão comum a todos nós, de uma maneira ou de outra, de amadurecimento e auto-conhecimento durante os anos escolares.
Uma igreja comum
Que uma igreja possa ser um lugar como qualquer outro? Absurdo impensável. De igreja e “crentelho” o mundo já é cheio. Então, a descriastinização da cultura é um imperativo. Não gratuitamente, adaptações ocidentais de obras que se inspiram na estética cristã precisam higienizar o produto final, para agradar sua audiência, como o caso de vampiros que não gostam da cruz “porque sua forma os desorientam”. E, se essa higienização vem ao custo da violação do enredo original, que seja. Problema de quem jogou, que “não é o público alvo”.
A adaptação (que se pretende criação) sequestra uma marca para, de antemão, agregar valor em cima de seu nome, pulando o esforço difícil e enfadonho de criar uma trama original do zero. Do ponto de vista de uma economia das redes sociais e de seu marketing, é mais lucrativo que assim se faça, pois engajamento é bem mais rentável do que audiência e sucesso de crítica.
Com o tempo começou-se a notar que a vilania pela vilania de padres, bispos, madres superioras e demais sacerdotes virou algo sem substância. Um recurso fácil e barato para construir um vilão cartunesco, inspirado no sucesso de um Corcunda de Notre Dame. Em poucas palavras, caiu na mesmice. Ficou chato.
Por isso, Kimi no Iro, nesse sentido, soa sutilmente inovador. É uma obra de ficção contemporânea, que a despeito disso permite que um espaço religioso possa ser um norte educacional na vida, em meio às dúvidas e ansiedades comuns a qualquer pessoa em fase de amadurecimento.
Diga-se de passagem, para encerrar a questão, a existência de obras pontuais como o livro “A Inocência do Padre Brown”, a novela “Carita de Ángel” ou o Noturno original dos X-Men são as excessões que provam a “regra” em questão. Kimi no Iro choca com nossas percepções simplistas sobre o que é uma igreja ou um convento e seu dia-a-dia.
Irmã Hiyoko: o amor e a instrução acima das expectativas
Não podemos subestimar o fato do filme começar com uma oração. Totsuko reza os primeiros versos da Oração da Serenidade, como uma maneira de tentar lidar com sua condição única.
“Deus, conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar. (…)”
A oração é repetida mais de uma vez ao longo do filme. Certamente que, tomada de forma isolada, a oração parece um convite ao conformismo. É nessa hora que a intercessão de uma das irmãs do convento faz toda a diferença na vida de Totsuko. A Irmã Hiyoko é atenta às necessidades de suas aluna, principalmente ao vê-la sozinha em oração na capela. Ela entende a bondade de sua aluna ao empenhar-se em ser uma boa garota, temente a Deus, mas a adverte para o resto da oração:
“Deus, conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso e a sabedoria para discernir uma da outra.”
É esse empurrãozinho pedagógico que instiga Totsuko a agir em prol de seus amigos, ainda que isso vá contra as regras do convento e ela tenha que arcar com as consequências de suas ações. Bom, só nunca errou quem jamais agiu. E Totsuko tem motivos para agir.
Motivações
Em parte, ela sente culpa pela saída de Kimi da escola e toma responsabilidade para que a colega não se isole. Ao mesmo tempo, Kimi passa boa parte do filme organizando seus sentimentos conflitantes de, por um lado não se forçar a frequentar uma escola que não é mais de seu agrado. Por outro, não magoar sua avó, ex-aluna da mesma escola e que em meio à sua gentileza, nutre altas expectativas para a neta nesses anos escolares.

Rui não passa por uma situação diferente. Ele se sente pressionado a continuar o negócio da família e estuda para se tornar médico, mas seu coração mora na música. Além disso, tem medo de expressar isso à mãe, médica da clínica, com medo de ser rejeitado. Porém, nota-se que a raíz desses embates internos são de fato… internos.
Shino, a avó de Kimi, ama sua neta e não expressa qualquer forma de animosidade ou hostilidade, sendo antes serena e acolhedora. Tammbém, a apesar do aparente distanciamento, a mãe de Rui não é uma figura excessivamente impositiva; seu comportamento é típico de uma mãe preocupada com o futuro de seu filho.
O que acontece é que a tensão comum a esses personagens não vem de repressões externas, mas do medo de magoar seus entes queridos. A recepção positiva da banda no Festival de Sâo Valentim mostra que todos eles eram amados acima de quaisquer expectativas.
Religião como agente
A Irmã Hiyoko não está fora desse sentimento, pois mesmo a saída de Kimi da escola não é vista como um acidente, mas uma eventualidade possível a qualquer um de nós, como um filho pródigo que é bem recebido de volta pelo seu pai. Curiosamente, aqui não há referência à famosa parábola de Cristo por parte da Irmã. Antes, ela cita o Livro de Isaías, numa tradução um tanto diferente do comum:
“Porque tu és precioso e honrado aos meus olhos, e eu te amei (…)” (Isa.43:4)
Com a instrução carinhosa da Irmã, Totsuko e Kimi que mentiras as contadas em razão do medo, as evasões e as dores causadas por essas mesmas mentiras são todas pequenas comparadas ao amor daqueles que cuidam de nós, e ao amor maior d’Aquele que intercede por todos nós. Tal é a mensagem da cruz que aparece no começo do filme e onde quer mais que apareça o símbolo do Cristo crucificado.
Conclusão: aquarela de sons
Kimi no Iro continua um rastro de trabalhos impecáveis de direção sonora. Mesmo assim, aqui o nome de Naoko Yamada não bast. Afinal, há uma companheira de carreira que também esteve responsável por este e outros espetáculos sonoros como o já mencionado Heike Monogatari, DanDaDan e, principalmente, Yofukashi no Uta, que ficou bastante famoso pelo uso sublime do silêncio como parte componente da ambientação que o anime buscava proporcionar. Eriko Kimura é o nome deste enorme talento.
Kimura não trabalha o silêncio meramente como uma ausência de sons. O quando é seguido de um porquê; por outra: a narrativa do filme não é só contada pela voz de seus dos personagens ou pela moção das animações, mas pelos sons. Não podemos ser alheios ao trabalho atencioso desses profissionais quando assistimos qualquer anime que seja.

Kimi no Iro tem um elemento de pé no chão que satisfaz qualquer músico. As melodias compostas por Kimi, Totsuko e Rui são amadoras como só poderia sair de quem está iniciando na música. Sem demérito a Bocchi The Rock, que amo, mas não há como começar do alto, com virtuosismos que exigem anos de prática.
Ninguém nasce uma Guitar Hero. Por isso, as canções soam tão autenticas e cativantes. Na verdade, o filme soa tão autêntico que parece um comercial. Não se escondem as marcas de amplificador como o da Orange, nem se disfarça o modelo Rickenbacker usado pela Kimi.

Visualmente falando, Kimi no Iro é leve, num ótimo sentido. Não é uma explosão sensorial, como se exige de muitas animações que precisam instigar as redes sociais. Assim como a sinestesia de Totsuko nos chama para um universo original de uma menina que vê o mundo com seus próprios olhos, o filme nos convida a enxergar uma aquarela de sons.
Aquarela esta que, ao apresentar a paixão pela música pelo ponto de vista de três jovens, nos convida a perceber que a música não se limita à criação de melodias, mas que com estas também se criam belas paisagens em nossas mentes.