Masaaki Yuasa conseguiu outra vez. Com um anime digno de sua reputação como diretor do melhor anime de 2018 (Devilman Crybaby), Eizouken mostrou melhor do que muitas outras obras, o trabalho imenso que existe por trás de cada anime que assistimos a cada temporada. E ao fazê-lo, Yuasa contou uma história de pessoas imaginativas, adicionando ele próprio uma tempestade de imaginação no meio disso tudo. Confira isso e mais neste primeiro Review que encerra a temporada de inverno de 2020.
“PROVA DE QUE EXISTO”: O VALOR DAS COISAS NÃO-INSTRUMENTAIS
Por que fazer um anime? Ou se decompormos essa pergunta à sua raiz, por que fazer qualquer coisa? Asakusa, Mizusaki e Kanamori são três pessoas que, cada uma a seu modo, dão talvez uma mesma resposta bem semelhante para esse pergunta de ouro. De ouro porque, diferente de hospitais, prédios comerciais, casas, navios ou aviões, produções culturais tem as suas próprias existências questionadas pela seguinte pergunta: “por que fazer isso?”, quando não perguntam “mas isso dá dinheiro?”.
A sobrevivência daquilo que é artístico num mundo que dá prioridade àquilo que tenha alguma finalidade instrumental (salvar vidas, economizar tempo de trabalho, melhorar a qualidade biológica da vida) é um problema bem palpável na vida de qualquer pessoa adepta às artes. Se pensarmos nas três maiores carreiras projetadas em cima de filhos do mundo todo, é comum pensar na mesma trindade: médico, engenheiro e advogado.
Mas Asakusa e Mizusaki querem fazer uma animação. Por quê? Para Asakusa, não existe outra possibilidade. Ela vive para ter ideias; ela vive no seu mundinho, diferente do mundo real (e por isso sua pouca afinidade em se enturmar), criando cidades, máquinas, cenários, histórias. Asakusa é uma criadora incurável.
Quanto a Mizusaki, ela nasceu para perceber o mover das coisas e isso foi uma das coisas mais surpreendentes de Eizouken: apresentar a mente de uma animadora e como ela nasce. A curiosidade de uma criança em perceber cada junta de seu corpo em frente ao espelho se mexendo para sentar e se levantar; a mesma curiosidade de ver como funciona o fluir de um resto de chá jogado pela avó. Semeada e bem cuidada, essa curiosidade fica mais ambiciosa: como funciona uma explosão? Como funcionam as serras saindo do braço de um robô gigante? E as pás de uma hélice girando ao vento? É um tipo bem único de imaginação que eu mesmo sequer sabia que existia e isso foi uma linda descoberta.
Mesmo que as duas façam um trabalho de bastidor, um trabalho que não as tornem visivelmente reconhecidas (Mizusaki é uma modelo, mas ela não quer ser reconhecida por isso), criar um anime, colocar suas experiências de vida na sua criação e dar forma às suas ideias é dar prova de sua existência ao mundo. Essa é uma das conclusões mais marcantes de um dos episódios de Eizouken.
Usei a expressão “não-instrumental” para caracterizar uma produção artística como os animes. Peguei emprestada de Weber, aquele sujeito que volta e meia é trazido de volta em alguma sala de aula. Pois é ele quem dá essa principal característica ao mundo atual: um mundo que prioriza a racionalidade com fins instrumentais técnicos. A rigor, produções culturais não possuem instrumentalidade alguma. Porém, existem ainda outros quatro tipos de ações na distinção de Weber. Entre elas, a ação orientada por valores absolutos é a que mais se encaixa no propósito de criar um trabalho de arte. Fazer algo em nome da beleza, em nome da criatividade, em nome da vontade de deixar uma marca no mundo. Esses são alguns exemplos dos tipos de valores que dão riqueza para criar e apreciar tanto animais quanto quaisquer outras coisas criadas pela humanidade e que apelam aos corações de cada um.
PORCAS CAPETALISTAS E O VALOR DE UMA PRODUÇÃO
Ainda que isso tudo que foi dito no parágrafo anterior possa ser verdadeiro, uma verdade fria e cruel permanece: se você não souber capitalizar em cima de seus sonhos, eles continuarão a mesma coisa: sonhos. Usando as palavras de antes: se você não souber como instrumentalizar algo que só possui um valor absoluto, seu sonho vai ser “algo bonito”, mas inviável para o mundo real. E é onde a Kanamori entra na equação para ser uma das melhores personagens do anime e da temporada.
De primeira vista, Kanamori não é nem um pouco agradável. E talvez nem de segunda ou terceira. Mas é impossível não ficar insensível à atitude dessa feia bonita (explico a expressão depois) que exala de suas palavras ríspidas e de sua atitude rude. E apesar da Kanamori não ser envolvida com arte, ela é envolvida com uma coisa: dinheiro; principalmente, como fazer dinheiro.
Normalmente, no meio artístico, falar de dinheiro é mal visto. Coisa de burguês safado. Como diria Tom Jobim de sua terra natal: “Aqui, sucesso é ofensa pessoal”.
Surpreendentemente, Eizouken, talvez por falar de arte numa perspectiva não tão próxima da gente, coloca em um anime que fala sobre o que é fazer anime, alguém de extrema necessidade em qualquer projeto (ou sonho) que pretenda se tornar realidade: alguém com alguma noção de realidade.
Entre duas pessoas que vivem no mundo da Lua, com as imaginações de pernas para o ar, Kanamori é a âncora que impede esse barco de ir à deriva e põe todos os seis pés do trio no chão. Ela não é imaginativa, mas sabe fazer as perguntas certas para direcionar a imaginação da Asakusa e da Mizusaki, além de saber frear e dar um basta quando as ideias começam a deliberar demais e agir de menos.
“Perfeitamente balanceado, como todas as coisas devem”; Kanamori é uma personagem de uma presença forte o suficiente para equilibrar sozinha o trio como um todo. Arrisco dizer que é porque desde cedo ela tem as ideias certas. A melhor porca capetalista da temporada assim o é, pois seu foco não é o dinheiro, mas aquilo que é produtivo.
“Não é de dinheiro que eu gosto, mas sim de atividades produtivas. O dinheiro é a métrica da produtividade.” Com essa frase magnífica, Kanamori mostra, de um jeito diferente, uma resposta bem parecida do porquê fazer coisas. Sua decepção em ver a loja dos tios fechar, virou um desejo de fazer coisas produtivas para garantir que as coisas que ela gosta continue existindo (como sua loja de lámen favorita) e criar novas coisas no caminho, como um estúdio de animação.
Kanamori nos dá uma lição sobre instrumentalidade: ela não é algo dado; somos nós quem a criamos quando sabemos como e onde investir uma ideia. Um anime, por exemplo, pode acabar se tornando uma fonte de receita para o turismo de uma cidade. Ou propagando para um clube invisível ao público. Sem meias palavras: Kanamori é uma empreendedora nata que sabe dançar o baile de máscaras do mundo onde vive, sendo até um tanto suja no processo. Mas sem ela, não existiria Eizouken.
A FEIA BONITA: COMENTANDO UMA POLÊMICA E O CHARME DE EIZOUKEN
Eizouken foi motivo de um enorme fuzuê na internet por causa dos comentários do youtuber Marco Abreu do Intoxi Anime. Basicamente, o rapaz resolveu encostar a onça com vara curta: o estilo cartunesco do traço de Eizouken conquistou na hora o público brasileiro, cujo público artístico é majoritariamente (senão totalmente) composto de artistas que adotam traços cartunescos e de uma veneração ao modernismo que faz a Semana de Arte Moderna de 1922 parecer ter sido na semana passada, ao invés de quase um século atrás.
Estacionados no tempo ou não, a coisa é a seguinte: bonito e feio é relativo e vai de cada um. Mas ai do um que ouse apontar beleza ou, principalmente, feiura. Ainda mais quando finalmente surge um anime que não se preocupa em ser bem trabalhado no traço, o que parecia ser uma demanda. Menos Animes, Mais Cartoons. E assim, o jovem Marco disse que, abro aspas:
“Bonito e feio relacionado a arte é gosto pessoal, mas um dia vai ter um “top 10 animes com design mais feios de todos os tempos” e esse aqui vai estar lá, certamente.”
E o caos reinou.
Para o lado dele óbvio. Marco virou uma referência negativa no meio dos youtubers de anime brasileiros (não acompanho a cena e sinto que definitivamente não estou perdendo muita coisa) e a longuíssima discussão “feio x belo” voltou à mesa. Quem ganharia no x1, Tarsila do Amaral ou Kentaro Miura?
Já que estou fazendo uma Review de Eizouken, nada mais justo do que dar um pitaco ou outro no assunto. Mas é uma tarefa delicada. Como eu disso: a norma é belo e feio ser relativo, mas ai de quem o anuncie. Em arte, a norma é “anything goes”, tanto fez como tanto faz, pois tudo é belo. Cantar a norma em coro é bom e te ajuda a ser mais aceitável, mas tapar o sol com a peneira não me faz bem. Não, Eizouken não é belo. E isso não o desqualifica em nada.
Vamos entender isso um pouco melhor (se você chegou até aqui sem mandar um “Okay boomer” e xingar a minha pessoa, claro): Eizouken não é belo. Ele é charmoso, ele é cativante, ele é atraente, ele é empolgante (e muito!), mas não é belo. Ele não se preocupa em concentrar seus esforços em técnicas de iluminação, quadros por segundo, rotação de câmera e outras técnicas que fazem animações de cair o queixo como os filmes de Makoto Shinkai ou Violet Evergarden. Inclusive, chega a ser bizarro como virou uma tendência atacar a animação de Violet Evergarden como “genérica” para aumentar o prestígio de Eizouken, quando isso é absolutamente desnecessário.
Pra começar, se entendermos bem o que significa ser “genérico”, estaríamos dizendo que a norma do gênero anime é ter animações iguais às de Violet Evergarden. Se assim fosse, o anime não teria sido aclamado do jeito que é por justamente ir além do padrão do que se vê em qualidade de animação. O erro é tão descarado que chega a ser triste.
Comenta-se então que fazer uma comparação é inútil, pois os dois animes têm propostas diferentes. Verdadeiro. Mas em que isso torna Eizouken menos não-belo? É impossível isolarmos cada anime que vemos em uma caixinha dentro de nossas cabeças e fingirmos que nunca mais vimos nenhuma outra coisa. É lógico que vamos comparar com outras experiências, é normal que comparemos e que bom o façamos! O fato de termos uma memória visual daquilo que amamos e daquilo que não gostamos significa que temos todos uma história como público fã de anime. Não dá pra fingir que essa memória não vem à tona cada vez que experimentamos assistir um novo anime, ou mesmo um anime velho que nos surpreende por ainda ser belo mesmo com o passar dos anos. Afinal as pessoas sentem nostalgia pelas animações dos anos 80/90 (apenas) por serem chatas? Pensemos isso um pouco melhor.
Como eu digo no subtítulo, e reforço, Eizouken é charmoso. Tão charmoso como a Kanamori, que acabou virando exemplo da “feiura” do anime. Reparem que em nenhum momento eu disse que ele é feio; apenas que ele não é belo. Assim como a atitude da Kanamori a torna uma garota extremamente atraente (daí o “feia bonita”, como bem disse o meu caro amigo Amer, fã de carteirinha dela), o show de imaginação e da sede de criatividade de Eizouken dá um charme único ao anime. É perfeitamente possível que um anime não seja bonito e ainda continue sendo maravilhoso por n outros motivos.
É o caso de “Rinshi Ekoda-chan”, um anime bastante bizarro, mas que em sua bizarrice me prendeu a atenção. E para deixar mais próximo aqui de todos, nossas próprias histórias com os cartoons dão prova de que nos divertíamos demais com coisas esquisitas e até mesmo desleixadas. “Du, Dudu e Edu” e “Flapjack” são dois exemplos fortes que me vem á cabeça. A própria ideia da “Mansão Foster para Amigos Imaginários” era ter um monte de bicho tosco e esquisito numa mansão onde o protagonista era um cilindro azul. E nós amávamos isso! E quem de nós vai querer admitir que aquilo era o supra-sumo da beleza já desenhada? Pelo menos quem de nós que não esteja querendo enganar a si mesmo.
O ponto é esse. A gente pode perfeitamente reconhecer que aquilo que a gente vê e gosta não é nada bonito e aceitar isso perfeitamente de boa. Inclusive, se a norma tão em voga, diz que devemos debater padrões de beleza, isso significa que devemos tornar tudo belo? Devemos mentir para nós mesmos a esse ponto? Ou é mais construtivos aceitarmos todos tanto a beleza como a feiúra?
CONCLUSÃO: OLHANDO COMO UM CRIADOR
Como a Review ficou longa, se não espinhosa a essa altura, vamos aos comentários finais, curtos e grossos: Eizouken foi arrebatador de se assistir, do começo ao fim. Não teve episódio que não fosse especial, com o último episódio fechando essa odisseia da imaginação de um jeito completamente emocionante.
Eizouken é emocionante principalmente para aqueles de nós que já nos encontramos de frente com a questão de criar alguma coisa. Um desenho, um rabisco, ver ideias tomando forma em tempo real na fala das meninas e finalmente ver o resultado final desses rascunhos. Quando você assiste as produções da Asakusa e da Mizusaki, você é lembrado em alguns flashs daqueles episódios onde uma ideia era discutida, feita, refeita, até chegar àquele resultado final. Chega inclusive ao ponto, onde você não mais assiste as coisas como mero telespectador, mas como alguém que participou daquela produção.
Trazer esse olhar pode ser enriquecedor para alguns de nós daqui pra frente; ele pode nos permitir valorizar os pequenos detalhes de uma animação que geralmente passa despercebido todo o trabalho que houve por trás dele. Pode permitir reconhecer estilos de um animador e assim essa pessoa abstrata ganhará carne e osso e, merecidamente, fãs!
Como tudo isso é visivelmente bem dependente do modo como assistimos o anime, tudo está bem dependente de uma linguagem das imagens, coisas que essas palavras digitadas tentam emular seu significado (e muito mal). Portanto, assistir Eizouken é uma obrigação para que esse texto seja mais compreensível. Falei um pouco das personagens, falei um pouco de uma treta, falei até mesmo de como entre o jeito como apreciamos e o jeito como utilizamos os animes, enquanto produções culturais, existe toda uma sociologia da cultura tão antiga quanto Max Weber.
Só que isso tudo são puxadinhos de minha pessoa para avaliar o anime e pensar sobre ele com vocês. O principal de Eizouken, aquilo que é dito única e exclusivamente com suas imagens é indizível. E para esse indizível, eu não tenho como dar nada menos do que 5 Suquinhos.