Proponho-me a, neste texto, fazer uma análise crítica do arco Dressrosa sem uma leitura prévia ou posterior do mangá. O texto contém spoilers até o episódio 746. Recomenda-se ter acompanhado a história até o episódio citado para melhor proveito da leitura.

Em algum lugar do Novo Mundo, contornada por formações rochosas, dominada por belas e límpidas ruas, aromas excêntricos e uma culinária inigualável, está localizada Dressrosa, “o reino do amor, da paixão e dos brinquedos”, um país muito frequentado pelos viajantes do mar, habitado por bonecos vivos sempre sorridentes.

O início do arco apresenta aos tripulantes dos Chapéus de Palha uma ilha mágica pacífica e tranquila, apesar do recente anúncio do rei Donquixote Doflamingo de renunciar seu posto de Corsário, situação que causa estranheza. Esse mistério, já iniciado nos primeiros episódios, intriga a quem assiste a entender o cenário apresentado, abrindo as portas para um dos melhores arcos do anime.

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Capa Divulgação

A narrativa de Dressrosa

A narrativa de Dressrosa é extremamente envolvente. Apesar de longo e arrastado (assim como o anime num todo, sendo essa uma das características de One Piece, desde o início), consegue adotar estratégias que tornam a experiência muito boa, como o abuso de elementos de alívio cômico, como Bartolomeo, um dos personagens que ganha destaque por sua personalidade fanática pelos Chapéus de Palha, os disfarces, apelidos, ou a vitória de Usopp por meio de uma careta ridícula, elementos o que fazem do arco um dos melhores do anime.

Desde o primeiro momento em que adentramos a ilha junto aos Mugiwaras somos envoltos pela atmosfera que domina o reino dos brinquedos. A ideia inicial é a de fragilizar Doflamingo a partir de sua renúncia como Corsário, mas as histórias e complicações que começam a se enlaçar à trama principal tomam conta, fazendo os protagonistas desviarem desse objetivo primordial. Essa lógica permite a Oda adotar a, já conhecida, estratégia de dividir os tripulantes em missões. A decisão é uma boa tática porque consegue dar mais atenção ao desenvolvimento individual dos personagens, além de permitir várias perspectivas e linhas de acontecimentos de um mesmo objetivo, uma vez que todas as subtramas apontam para uma mesma direção. Dessa forma, o encontro desses personagens se dá em um mesmo ponto moral e estratégico da trama, seguindo uma linha evolutiva.

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Imagem Divulgação / Gekkou Gear

A segregação dos integrantes se deu de forma muito natural e competente, contando com motivos bem estruturados, relacionados às próprias personalidades dos personagens – Zoro se perde do grupo; Sanji é cativado por uma mulher, a dançarina Violet, se apaixona por ela e a segue; Luffy se inscreve para a disputa pelo Mera Mera no Mi, o Akuma no Mi de seu falecido irmão Ace. Justamente por conta das características dos personagens ao longo do anime terem sido bem desenvolvidas, nos conectamos com eles, entendemos e validamos seus motivos para esse desvio do objetivo central, permitindo uma ramificação da história.

A estratégia foi bem sucedida e concede a Oda, ainda que de forma razoavelmente tímida, apresentar a evolução de parte da tripulação após os treinamentos intensivos do timeskip. Zoro tem seu momento de dominação do Haki do Armamento (apesar de que o Oda faz parecer algo banal no novo mundo – e talvez seja mesmo). Franky recebe seu holofote ao contrariar Luffy e afirmar que vai lutar ao lado dos Tontattas, um momento que mostra também um amadurecimento moral de Luffy. Usopp desperta o Haki da observação, habilidade muito condizente com ele. Em contrapartida, ao longo da saga, ainda se apresenta de forma muito acovardada, o que não acho que seja um defeito, e sim uma característica do personagem, todavia, a escolha de Oda em estender excessivamente este momento acaba por cansar o espectador e o fazer cultivar uma aversão por ele. A sua redenção acontece em seu grande alívio cômico, tornando-se God Usopp, o capitão de 80 milhões de homens, momento em que suas mentiras começam a se tornar verdades, apesar de não ser do modo como planejava. Um destaque deve ser feito para o momento em que de sua fala rouca só reverberam para os que o escutam algumas poucas palavras, que juntas os conduzem a seguirem e obedecerem-no como um Deus milagroso. São nesses detalhes que moram a grandeza da obra de Oda. Por mais, Luffy atinge o Gear Fourth, um power up muito condizente com seu poder do elástico, unindo ele ao Haki do Armamento (sendo bem semelhante ao Gear Third), de forma bastante inesperada e até engraçada. 

A luta contra Doflamingo foi um dos pontos altos do arco. Apresentou um mano a mano de tirar o fôlego, contando com Luffy e Law em sua força máxima, várias reviravoltas, estratégias de luta muito bem utilizadas envolvendo os poderes e capacidades dos personagens e alto impacto. Todavia, tinha ainda um potencial de ser muito maior. Trazendo uma análise feita pelo Narrador no canal Narrativando no Youtube, o arco num todo (e o próprio fio condutor do anime) tem como base a discussão sobre liberdade. O poder de Doffy tem muito a ver com a manipulação das pessoas, situações, lugares, através de suas cordas e o embate com Luffy se dá em muito por conta de sua visão e valorização da liberdade. Apesar disso, a luta se limita às trocas de socos, deixando de lado os diálogos, que poderiam ser muito bem utilizados para remeter a esse assunto agitador do arco. Um dos únicos momentos em que o tema é trazido à tona é através de uma das únicas falas do Luffy sobre liberdade durante a batalha – “Você com seu poder tenta prender tudo em suas mãos para que possa controlar todo mundo. Isso está me sufocando!”. Ela funciona muito bem como frase de efeito, mas sem um desenvolvimento mais amplo, fica solta. Uma atenção maior a esses diálogos poderia adicionar uma camada a mais de densidade para o arco, retomando a ideia de Luffy de que só o mais livre dos homens poderá se tornar o Rei dos Piratas. Isso, inclusive, conectaria muito todas as lutas do arco, desde a liberdade dos Tontattas, dos esquecimentos daqueles cidadãos que foram transformados em brinquedos, do legado do rei Riku, da relação de Kyros e Rebecca, da ampla estrutura de tráfico envolvendo Caesar, a produção e venda dos SMILES, das armas e o próprio embate contra Doflamingo (já que TUDO está ligado à discussão sobre liberdade). Por mais, conectaria ainda tudo isso à formação da grande frota do Chapéu de Palha no fim do arco e a recusa de Luffy em se tornar comandante oficial desses piratas, afinal, para ele, o poder não deve ser o objetivo daquele que se propõe a ser o Rei dos Piratas, isso seria puramente consequência, porque esse posto só poderia ser tomado por aquele que é puramente livre e esse deveria ser o único e maior objetivo.

As revelações e os mistérios de One Piece

Grande parte do peso do arco se dá pelas revelações que nele acontecem. A história da ilha vai sendo gradativamente revelada e, se mesclando a ela, algumas incógnitas da narrativa mais ampla do anime são trazidas, debatendo visões de mundo, história, política e poder de forma muito bem estruturada conceitualmente e contendo tudo muito bem amarrado aos pequenos acontecimentos da saga.

A dominação de Dressrosa apresenta-se como pretexto para a apresentação desses conceitos e mostra-se ser uma simples parte das engrenagens de funcionamento do grande sistema das estruturas de poder que comandam o mundo de One Piece – o Governo Mundial, a Marinha, os Imperadores e Shichibukais, os Dragões Celestiais… No arco, explica-se que, há oito séculos atrás, os reis de 20 nações convergiram no epicentro global e uniram esforços para estabelecer uma grande entidade única – o Governo Mundial. Esses soberanos fundadores, com exceção da família Nefertari, de Alabasta, decidiram relocar suas linhagens para viverem Mariejois, separados do restante do mundo. Dessa forma, 19 famílias e seus descendentes até hoje residem lá e são atualmente conhecidos como os Dragões Celestiais. Essas articulações envolvem muito o público por se tratarem de metáforas para tratar dramas universais de disputas de poder, fazendo com que qualquer um possa se relacionar com o tema. Também ficamos sabendo mais sobre o Exército Revolucionário liderado por Dragon, pai de Luffy. Esse suspense e demora em apresentar o grupo é uma escolha muito acertada, já que dá realmente a sensação de uma organização sigilosa.

O arco também é usado para adensar alguns dos mistérios da saga como o segredo do D., um enigma que perdura desde o início do anime, trazido à tona na passagem pelo passado de Law, personagem que, inclusive, poderia ter tido ainda mais protagonismo, especialmente na luta contra Doflamingo, uma vez que é colocado com constantes estados de quase morte e fragilizado de forma inconsistente. Talvez tê-lo mantido sem o braço teria carregado mais o peso do conflito ao longo da história. Oda tem uma recusa em matar personagens ao longo da história. Essa fragilidade funciona como uma faca de dois gumes, porque, por um lado, dá uma segurança ao espectador de que nada de ruim pode acontecer ao bando e, quando isso por fim acontece, como com a morte de Ace ou a separação do bando em Sabaody, a tensão se multiplica em muitos níveis e o drama se intensifica, o acontecimento é catártico. Todavia, também carrega uma fragilidade, uma vez que acontecimentos como a grande luta contra Doflamingo perdem o peso e densidade que realmente tem, porque temos a certeza de que no final tudo acabará bem. Por isso, esse artifício tem que ser muito bem utilizado ao longo da história, justamente para não pender demais para um lado nem para o outro.

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Imagem Divulgação

Apesar disso, Law é apresentado de forma mais densa nesse arco, mostrando sua história em Flevance e sua doença autoimune que o conduziu à família Donquixote. Lá conhece Corazón e a relação dos dois se torna um ponto importante do desenvolvimento do arco. O apelo emocional da história faz o público criar uma empatia muito grande com ambos e dá uma dimensão dramática à história. Oda se utiliza disso e das história adjacentes da ilha para conduzir todo o esforço de Luffy para salvar Dressrosa, afinal, retomando outra fala do Narrador, “histórias sobre salvar o mundo podem soar muito afastadas de nós, mas histórias sobre salvar alguém querido e no processo acabar salvando o mundo podem ressoar muito mais” e é essa a grande potência que tem o arco.

Donquixote Doflamingo

Doffy é sem sombra de dúvidas o maior vilão de One Piece até o momento. Citado por Bellamy na saga de Water 7 e dando as caras na Guerra dos Maiorais, já mostrava muita personalidade e potencial, ainda que de forma tímida, fazendo os espectadores cultivarem expectativas altas para com ele. No arco de Dressrosa, toma conta dos holofotes e se constrói como um personagem grandioso, merecedor de todos os aplausos recebidos.

Parte dos motivos que tornaram Doffy um grandioso vilão é seu passado. De sangue nobre, é descendente de uma das 20 famílias de Dragões Celestiais que criaram o Governo Mundial, sendo eles os antigos soberanos do reino de Dressrosa, antes da família Riku ocupar o posto em seu lugar. Em flashbacks vemos a família Donquixote saindo de Mariejois para viver com o povo a quem oprimiu, numa ingenuidade em pensar que os aceitariam de braços abertos, todavia, a ferida se trata de uma violência histórica, dores antigas que só poderiam ser cauterizadas com o desmanche do sistema vigente dos Dragões Celestiais, trazendo uma análise profunda sobre as organizações político-sociais e como, por muitas vezes, os problemas envolvendo esses sistemas não podem ser solucionados apenas por ações individuais.

Ao longo dos flashbacks, conhecemos um Doffy que não se tornou mal por situações difíceis de vida ou contextos complexos que poderiam nos fazer compreender suas razões e nos empatizar com o personagem, seus motivos e, quem sabe, até justificar suas ações cruéis. Pelo contrário, vemos um vilão já puramente mal, em que as situações ao longo da vida apenas despertaram ou incentivaram essa maldade já existente, como vemos quando, sem pestanejar, atira e mata seu pai por razões egocentradas de tentar voltar à Mariejois e restabelecer seu título de nobreza usando sua cabeça como pagamento.

Com os pais falecidos e o irmão que foge, Doffy cria sua própria família: o bando Donquixote, em que só os mais fortes podem fazer parte e só esses seriam dignos desse amor incondicional, carregando uma definição deturpada e disfuncional, mas ainda assim, valorizando a ideia de família. Cultiva um carinho grande pelos integrantes e os defende de zombarias e ataques, como no caso das piadas com a voz de Pika, mas, ao mesmo tempo, não hesita em matar um dos membros, se isso lhe convier no momento, como acontece com Corazón.

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Extremamente perspicaz, habilidoso, forte, estratégico e inteligente, Doflamingo é um vilão que marca o espaço, e sua presença nele é sempre uma ameaça, dá medo ao espectador. Isso faz com que as soluções do personagem perante os cenários adversos devam ser muito bem planejadas, porque, justamente por ser um personagem muito bem desenvolvido e grandioso, suas escolhas saem do óbvio e sempre carregam algum tipo de mistério, surpresa ou plot twist. Caso as decisões do autor para as ações de Doffy não sejam tão bem articuladas, poderiam ser lidas pelo público como trapaça para que o protagonista atingisse o êxito, de forma que a conquista a partir da fraude tirasse seu mérito. Por mais, toda essa potência do personagem cria no espectador uma vontade intensa de que o vilão seja derrotado, isso não somente por conta de sua crueldade e atitudes maldosas e violentas com para Dressrosa, mas, e principalmente, porque ele se mostra ser uma ameaça muito grande e que poderia acabar por ser um obstáculo verdadeiro para que o objetivo de Luffy de se tornar o Rei dos Piratas seja atingido. Dessa forma, a derrota de Doffy impactaria não somente no futuro do reino e dos habitantes de Dressrosa, mas no próprio equilíbrio do Novo Mundo e do seguimento da jornada do bando do Chapéu de Palha. A apreensão com para Doflamingo se equipara à aflição perante a separação do bando em Sabaody, um momento muito bem construído de tensão da história.

Oda apresenta ao espectador um Doflamingo que acredita ser um Deus, o que constrói sua narrativa e características enquanto personagem. Mais que isso, essa sua percepção de entidade sacralizada em muito se relaciona com sua linhagem de Dragão Celestial, posto que são vistos como os deuses do mundo. Por esse motivo, a derrota de Doffy por Luffy é muito significativa, simbólica e semiótica, uma vez por Luffy carregar o D. no nome, o que, segundo o folclore, seriam os ‘traidores jurados de Deus’. Essa simbologia se apresenta magnificamente na primeira suposta derrota de Doflamingo, quando o protagonista desfere um golpe que lança o vilão em uma pedra. Ele é desenhado na vertical de braços abertos, em posição de cruz, remetendo à imagem bíblica de Jesus. Assim como ele, também renasce depois de todos acharem ter sido derrotado, se auto-curando com suas cordas, e, quase como um milagre, voltando à vida. Trata-se de uma relação semiótica sutil, mas perigosa, uma vez por lidar com símbolos sacralizados. Com seu retorno, o pirata novamente direciona seus esforços para abate-lo de vez e, como uma profecia Nietzscheana, o traidor jurado mata Deus em Dressrosa e abre as portas de One Piece para uma nova era do anime. Doflamingo, após sua derrota, torna-se profeta (ainda que eu, pessoalmente, não tenha achado uma boa decisão manter o vilão vivo após a vitória de Luffy) e, enquanto é levado pela Marinha para a prisão de Impel Down, fala para a Almirante dos perigos dessa porta que fora aberta por conta de sua deposição, denunciando o funcionamento de todo o sistema de poder do mundo por meio de uma das maiores e mais intensas falas do anime:

Piratas são ruins? A marinha é a justiça? Esses rótulos foram passados por todas as gerações tantas e tantas vezes. Crianças que não sabem o que é a paz e crianças que nunca viveram uma guerra… Seus valores são completamente diferentes. Quem quer que esteja no topo é quem vai decidir o que é certo e o que é errado! E agora, este local é o marco zero! A justiça prevalecerá? É claro que irá! Porque os vencedores definem o que é justiça! – (D. Doflamingo).

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