Sonhos eternos, vizinhas com o rosto cheio de dentes e cidades amaldiçoadas. Essas são algumas das histórias da coletânea Cidade das Lápides, mais uma peça de ouro da nossa parceira Pipoca & Nanquim e do nosso mestre do horror, Junji Ito.
A Coleção de Coletâneas
Acho que nunca comentei muito sobre as coletâneas da editora como um todo. Fazendo a coleção delas — uma coleção linda, por sinal — a gente percebe o padrão e o cuidado das publicações.
Todas elas tem uma cor forte, super saturada e evidente. Inclusive, a cor da sobrecapa combina com o marcador de páginas e com a capa em si. Em relação a capa, a arte é sempre um corte de duas histórias presentes na publicação, mostrando rostos desconfigurados ou fantasmagóricos.
A lombada das coletâneas ficam ma-ra-vi-lho-sas lado a lado na prateleira, pois são todas simétricas. Em cima o nome do autor, seguido do título do mangá, então um recorte de algum personagem e embaixo a logo da editora.
Também, todos os volumes possuem a biografia de Junji Ito, a data e revista de publicação de cada uma das histórias e quatro cards colecionáveis e exclusivos.
Inclusive, os cards são meus xodós, estou ansiosa pra mostrar a vocês o case que a Pipoca & Nanquim enviou pra guardar eles.
Sem falar na qualidade padrão de todas as publicações da editora em relação a papel, impressão, tradução e notas que nos fazem compreender o contexto total da cena.
Vale a pena
Então, claro que com um ou dois mangás dessa série de coletâneas já dá pra ver que são lindos e, dependendo do volume, assustadores logo na capa. Porém, é juntando todos os volumes na prateleira que a obra toda fica harmoniosa e apaixonante.
Afinal, é uma paleta inteira de cores exposta na sua casa, cheia de histórias que não vão te deixar apagar a luz e desenhos horrorosos que nos faz quase jogar o mangá de agonia. Tem coisa melhor?
Enfim, agora que trouxe essa visão mais ampla das coletâneas, vamos ao que interessa: nos aventurar pelos cantos mais sombrios da mente de Junji Ito.
Cidade das Lápides
Para começar com dois pés no peito, o primeiro capítulo já é Cidade das Lápides, que dá nome à história.
Nessa história, dois irmãos vão visitar uma amiga em uma cidade que ela descreve como misteriosa. Porém, chegando lá eles se envolvem em um acidente e acabam mexendo na pessoa ferida. Sem saber, eles sofrerão consequências vindas do submundo por esse ato.
Caso lembrem, essa história já apareceu em Dismorfos, uma coletânea sem igual da Pipoca & Nanquim. Mesmo lendo novamente, a história continua tensa e cheia de suspense. Não à toa carrega o nome da publicação.
Casa dos Camaradas
Agora, acompanhamos um trio de amigas que decide explorar uma casa abandonada. É claro, nada de bom poderia surgir disso. Yukari desiste e fica no lado de fora, enquanto as outras duas se separam e cada uma vai explorar a parte de cima e de baixo. No entanto, o comportamento de Chikaku e Minae muda radicalmente depois dessa visita, deixando essa amizade divida por rixas mortais.
Honestamente, tomou um rumo que eu não achei que fosse tomar, o que eu considero bom. Casa dos Camaradas trouxe uma proposta que, se eu não estou enganada, não lembro de ter visto em outras histórias de Junji Ito. Daria um bom filme de terror.
Garota Lesma
Essa é mais uma história que já apareceu em Dismorfos. Yuko, uma garota falante da escola vai ficando cada vez mais quieta à medida que sente dificuldade pra falar. Sua língua parece meio presa e a situação agrava tanto que ela para de ir à escola. Preocupada com a amiga, Rie vai visitá-la, mas quando viu no que sua amiga estava se transformando não conseguiu prestar ajuda.
Creio que comentei antes e sigo com a mesma opinião. Acho meio mais ou menos essa história. É nojenta? Sim. Incomoda? Também. Mas assim…. Junji Ito já escreveu tanta coisa melhor, que imagino que essa história tenha sido em um dos seus momentos de descanso.
A Janela Vizinha
Uma família se muda para uma nova casa e decide cumprimentar os vizinhos. No entanto, uma das casas parece estar sempre vazia, mesmo que haja boatos de uma senhora peculiar que mora ali. Então, de noite o garoto da família ouve alguém o chamando pela janela e o que ele vê não poderia imaginar nem nos seus piores pesadelos.
Okay, aqui temos o melhor do pior de Junji Ito. Quando eu abri a página que mostra o que tem do outro lado da janela meu estômago gelou de medo. Eu literalmente não consegui ficar com essa página aberta, ao mesmo tempo que fiquei fascinada com a capacidade de desenhar algo assim. Sinistro de mais.
Encalhe
Um belo dia aparece um corpo estranho encalhado na praia, o que muitas pessoas pensaram ser uma baleia. No entanto, seu corpo tinha características anormais que não se encaixava com nenhum outro animal. Então, depois de muito se observar esse corpo, perceberam que tinha algo dentro dele. Com certeza, aquilo não tinha nada de “normal”.
Essa é uma das histórias de Cidade das Lápides que apareceu no anime Histórias Macabras do Japão, da Netflix. Tem um enredo cheio de suspense e um misticismo no ar que intrigam e fazem a gente querer saber mais. No geral, não é um enredo que me impressione muito.
Antepassados
Nessa aqui Junji Ito caprichou. Nessa história, uma garota sofre com perda de memória, provavelmente causada por algum evento traumático que presenciou. Então, seu amigo decide ajudá-la e a leva para a casa dele, conhecer seu pai. Porém, a garota vê algo impossível de esquecer, mas que desejou jamais ter conhecido.
Uma mistura de centopeia humana com regressão que causa um desespero e uma angústia. A história é horrível, o que aconteceu com pai e filho é perturbador e os desenhos disso tudo são uma tortura de ver. Além disso, se existir o oposto de final feliz, é o final dessa história. Recomendo totalmente.
Um Longo Sonho
Neste conto de Cidade das Lápides acompanhamos duas vidas. Primeiro, de Mami, uma garota com uma doença aparentemente sem cura, que morre de medo da morte (risos). Segundo, de Mukouda, um homem que tem sonhos que parecem durar muito tempo. Para ele, se passaram horas, meses e até anos, no período de uma noite de sono. Assim, quanto mais o tempo passa, mais longos os sonhos ficam, fazendo com que Mukouda tenha dificuldade de distinguir o que é real e o que não é.
Sejamos sinceros, Junji Ito inventou San Junipero, aquele episódio da 3ª temporada de Black Mirror. A perspectiva de sonhos quase sem fim, que se confundem com a realidade é muito intrigante. Afinal, quem nunca pensou que a vida poderia ser um grande sonho (ou pesadelo)?
O Estranho Conto do Túnel
Este é o segundo capítulo da coletânea que aparece em Histórias Macabras do Japão. Nele, uma cidade possui um longo e escuro túnel, onde várias pessoas iam para tirar a própria vida. Mesmo depois de anos desativado, o túnel ainda é uma atração para os aventureiros e inconsequentes. No entanto, as visões que ele causa e o destino de quem entra ali é uma verdadeira aventura do inferno.
De maneira geral, esse conto é bem tenso. Trata de assuntos delicados, tem uns desenhos bem macabros e o suspense em si é de tirar o fôlego. No entanto, mesmo quando assisti no anime fiquei meio… é isso? Okay. Talvez não seja o meu tipo de história, mas gosto da premissa de um túnel mal assombrado. Não é uma história tão boa quanto Cidade das Lápides nem tão fria quanto Encalhe, então é um meio termo pra quem gosta de um terror sem um enredo muito complexo.
Estátua de Bronze
Em um parquinho da cidade um grupo de mães se reúne diariamente perto da estátua da viúva do antigo prefeito. No entanto, após debocharem da aparência mentirosa do monumento, são convidadas à casa da viúva para um jantar. Elas nunca iriam imaginar que essa noite daria início a uma investigação que revelaria os segredos macabros sobre a produção dessa estátuas. Uma coisa é certa, elas são realistas de mais pra ser verdade.
De primeira, me lembrou muito o filme A Casa de Cera, um terror dos anos 2000. Porém, os acontecimentos foram crescendo numa escala de absurdo que não tem comparação. O fim é cruel, irônico e muito merecido. Novamente, Junji Ito nos dá a perspectiva da busca doentia por uma imagem perfeita.
Papilhos
Voltando para casa, um garoto encontra seu amigo caçando alguma coisa durante a noite enquanto implora para seu amigo não se aproximar. Logo ele descobre que seu amigo estava caçando papilhos falantes, que aparentemente falam o que está escondido nas profundezas de seu coração. Porém, o que começou com simples confissões se transformou num estado de calamidade pública, indo para crimes e até mesmo mortes.
Essa história me deixou muito tensa, mas não foi exatamente por medo. Claro, tem o suspense, o mistério do que vem a seguir, mas isso quase fica em segundo pano. O que me impressionou foi atmosfera de insanidade que toma conta desse conto. O quão rápido alguns personagens se entregaram a esse lado perverso e o que foram capazes de fazer. Uma história tensa e que te faz pensar: o que você faria se seus segredos mais profundos estivessem espalhados ao vento?
Conto Sanguinário da Vila Shirosuna
Finalmente, chegamos na última história de Cidade das Lápides. Nela, um médico vai até uma vila remota, onde a estrutura é precária e os habitantes são extremamente pálidos e anêmicos. Depois do espanto de atender uma criança que teve uma séria hemorragia, o médico fica determinado a descobrir o que está causando essa suposta doença. Porém, na sua investigação ele descobre algo que seria melhor nunca ter visto.
A coletânea terminou muito bem, na minha opinião. Também é um conto cheio de suspense, em que ficamos na expectativa da explicação. Isso pode ser um pouco frustrante, mas imaginar a cidade como um ser vivo já é suficiente para impressionar. De qualquer forma, esteja preparado para um banho de sangue, pois isso é o que não falta.
Conclusão
Cidade das Lápides traz uma coleção de histórias muito boa, com a maioria dos contos sendo inéditos (não apareceram em outras coletâneas). Além disso, alguns desenhos, como de A Janela Vizinha, ainda nas últimas páginas me pegou desprevenida e me encheu com aquele incômodo novamente.
Já me perguntaram o que tem de tão assustador no Junji Ito e eu respondi algo parecido com isso: ele brinca com as nossas noções corporais. O autor consegue desconfigurar, moldar ou apenas desenhar seres humanos de uma forma que inconscientemente nossa mente rejeita. Um rosto cheio de dentes? Que horror. A sensação de uma lesma saindo da sua boca? Prefiro comer sal. Sem falar nas expressões que Junji Ito desenha com tanta maestria e consciência de que vai ser intenso e absurdamente desconfortável de ficar olhando.
Enfim, um ótimo exemplo da qualidade e capacidade de Junji Ito em fazer histórias que perturbam não apenas pelo enredo, mas pelos desenhos estranhamente perturbadores. Além disso, como falei no início, vale a pena ter uma coleção dessa na prateleira. Então, prepare seu coração, tranque as portas e confira a Cidade das Lápides.