Perambulando pela internet após ver o filme ‘Esquadrão Suicida’, não pude deixar de notar o hype ao redor do assunto e as diversas manifestações nas redes sociais vangloriando o relacionamento da Arlequina com o Coringa – colocando o casal como um ideal de relacionamento. Através de um olhar mais crítico podemos perceber que a história não é bem assim.
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A primeira aparição da personagem Arlequina aconteceu em 1992, durante o episódio “Um Favor para o Coringa” na série animada de televisão ‘Batman: A Série Animada’. Desde então, o relacionamento entre os dois se tornou muito popular e a personagem, que era para ter apenas uma aparição, se tornou uma das primeiras a sair de outras mídias para ganhar os quadrinhos da DC (1993) e o Universo DC (1999).
A Origem da Arlequina
A Doutora Harleen Quinzel, psiquiatra no Asilo Arkham, tinha por paciente ninguém menos que o próprio Coringa. A cada entrevista, Harleen era sutilmente manipulada até começar a desenvolver empatia e paixão pelo palhaço. Como prova de fogo em seu plano, o Coringa a convence a doutora a tornar-se sua cúmplice e auxiliar em seu plano de fuga. Posteriormente, a doutora seria transformada em Arlequina através de um doloroso “tratamento” químico.
A Obsessão do Coringa
Arlequina é tão louca pelo Coringa que o que seu maior desejo é realizar os desejos dele: ajudá-lo a matar o Batman. A verdadeira obsessão de Coringa, entretanto, é pelo morcego de Gotham. Mesmo que consiga ajudar na finalidade, a ajuda de Arlequina só é bem vinda caso siga exatamente os comandos do palhaço, caso contrário as coisas não acabam nada bem. Veja o trecho abaixo:
O trecho, retirado da série animada, demonstra o nível de obsessão e violência envolvidos. O Coringa fica bravo porque Arlequina ficou em seu caminho, mas isso não daria brecha para que ele pudesse fazer com ela o que quisesse. Vejamos outros exemplos.
*Atenção, o texto abaixo contém spoilers do Filme*
O Universo cinematográfico
O filme nos mostra vagamente um relacionamento abusivo e tóxico. Há duas cenas específicas que demonstram esse comportamento:
A primeira é a cena da fuga – Coringa e Arlequina estão sendo perseguidos pelo Batman. Para escapar, Coringa joga o carro no rio e abandona Arlequina sabendo que o Batman a salvaria. A segunda é a cena do tanque – Coringa, pergunta a Doutora Harleen Quinzel se ela viveria por ele, então ela diz que sim. Como prova de seu amor, a doutora pula no tanque químico, e Coringa sabe que ela não consegue nadar. Ele estava indo embora, quando voltou atrás e pulou no tanque para salvá-la. É nesse momento, que Harleen Quinzel se torna Arlequina.
Nas HQs a história não é bem assim. Coringa leva a doutora na Química Ace, onde o mesmo diz que iriam celebrar um novo nascimento da moça, então ele a joga no tanque. Veja abaixo as imagens da HQ:
Em outras mídias, o Coringa é retratado como um personagem egoísta que usa a Arlequina de ferramenta para suas tramas. No filme, o enredo mostra o palhaço preocupado e motivado a salvar sua cúmplice, romantizando a relação dos dois. A impressão é que o universo criado no cinema, aborda o personagem sob outro ângulo, como um vilão que ‘apesar de tudo’ se importa com a Arlequina – e são pensamentos como este que muitas vezes legitimam a continuidade de relacionamentos abusivos.
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Um monstro bonitinho
Obviamente, tudo isso é muito problemático. Aqueles que conheceram os personagens apenas pelo filme podem ter uma visão diferente, entretanto, é necessário identificar e compreender o ponto central do relacionamento – Arlequina é uma personagem trágica. Sua paixão pelo Coringa não é um romance e muito menos algo fofinho. O relacionamento dos dois é embasado em manipulação, mentiras e abuso e, o que é pior, ela sente que ela merece tudo aquilo. Representar esta dinâmica como algo normal ou romântico dá legitimidade à ideia de que abuso doméstico é aceitável. Mesmo que sejam personagens fictícios, retratam pessoas que possuem sentimentos e, na vida real, não é aceitável alguém ter controle da sua vida por você… Precisamos mostrar que isso é sério e tem consequências.
O filme não retrata uma Arlequina independente, tentando se encontrar fora do caos e da loucura do palhaço, mesmo assim, a personagem ganha carisma e força própria para atuar além da sombra do Coringa.
Creio que a DC tem feito dos problemas do mundo um alerta para a sociedade, mostrar que um relacionamento abusivo pode estar embaixo do próprio nariz e só você não é capaz de enxergar… Nos mostra também a força que a Arlequina como mulher possui para aguentar tantas situações.
Isso mostra que vítimas de violência doméstica têm esperança e que, acima de tudo, você deve possuir amor próprio.
Por isso, não devemos romantizar relacionamentos problemáticos do mundo fictício. Muitas vezes, os vilões são exemplos de como poderíamos enxergar as coisas de outro modo e claro, fazer disso modelo do que não ter em nossas vidas.