Se tem alguma coisa que eu não esperaria era fazer uso da minha formação para escrever sobre imunologia. Definitivamente não para uma mídia relacionada a animes. E então surgiu Cells At Work (Hataraku Saibou), as mais de dez abas abertas sobre imuno (para os íntimos da área da saúde)no navegador, e a tarefa difícil de resumir em um pequeno artigo um assunto complexo que ainda não é completamente compreendido pela ciência, apesar das extensas pesquisas desenvolvidas na área.
Mas assim como nossa eritrócito (célula vermelha do sangue, ou hemácia) favorita, seguimos em frente! Mesmo sem saber para onde! E mesmo este artigo não tratando dela!
O que é uma célula?
Essas unidades básicas do nosso corpo são pequenos “saquinhos” fechados, cheios de água. O “saquinho” é a membrana externa, que é feita de lipídeos (alguns exemplos de lipídeos são as gorduras e os colesteróis, mas existem muitos outros) que impedem que o conteúdo de dentro da célula seja perdido. Se a membrana se rompe, a célula morre.
Dentro da célula humana existem outros “saquinhos” de lipídio, que chamamos de organelas, pequenos órgãos que exercem todo tipo de função necessário para sua sobrevivência. O núcleo contendo todo o DNA da pessoa é uma delas, e a mitocôndria que é responsável pela respiração e fornecimento de energia é outra.
Por fim, tudo o que a célula faz depende das suas proteínas. São uma enorme quantidade delas, e cada uma possui uma função específica. Essas podem ficar do lado de dentro da célula, ou grudadas na membrana externa, para que a célula possa interagir com seu ambiente, seja com pequenas moléculas, seja com outras proteínas.
Uma interação importante para nós aqui é a que chamamos de modelo de chave e fechadura. Assim como uma fechadura, uma proteína só vai responder a uma “chave” com um formato específico, ou algo com um formato bastante próximo. Uma célula comum tem muitas “fechaduras” diferentes na sua membrana, que terão diversos efeitos no seu comportamento. Proteínas “fechadura” na membrana de uma célula são chamadas de receptores.
Organização do sistema imune
Como já foi dito em Cells At Work, U-1146 é um neutrófilo, a categoria de células brancas mais numerosas no corpo humano, e a primeira linha de defesa contra agentes invasores. E Cells At Work também mostra que as células T costumam chegar depois. Isso acontece porque são parte de “divisões” diferentes do sistema imunológico: U-1146 pertence ao sistema imune INATO, enquanto seu colega Killer T pertence ao sistema imune ADAPTATIVO.
Para simplificar, podemos dizer que o sistema imune inato é o que reage de maneira genérica e rápida, e o adaptativo é o que produz uma resposta diferente específica para cada invasor, e para isso precisa de tempo para se organizar.
Podemos dividir os personagens que apareceram entre esses dois sistemas:
INATO | ADAPTATIVO |
Neutrófilos (U-1146) | Linfócito T Killer (citotóxico) |
Macrófagos/Monócito | Linfócito T Helper (auxiliar) |
Eosinófilos | Linfócito T Regulatory (regulador) |
Basófilos | Linfócito T Naïve |
Mastócito | Linfócito B |
Célula Dendrítica | Linfócito B e T de memória |
Célula NK |
Os dois tipos de imunidade são complementares, e interagem frequentemente entre si, ajudando um ao outro, conforme veremos depois.
Resposta imune inata
Uma característica importante dos neutrófilos, monócitos, macrófagos, células dendríticas e mastócitos é que são fagócitos. Fagócitos tem esse nome por terem a capacidade de realizar fagocitose, o processo de “comer” partículas como bactérias, células mortas do hospedeiro ou restos de células.
Fagócitos possuem em sua membrana receptores genéricos que são ativados por moléculas que são comuns a vários tipos de micróbios diferentes, mas que não existem no corpo humano. Moléculas que produzem uma resposta do sistema imune são chamadas de antígenos. Quando algum desses antígenos ativa um receptor se ligando a ele, o fagócito começa o processo de fagocitose. Envolve o corpo estranho com sua membrana, e o traz para dentro de si. Uma vez isolado dentro da célula, e envolto por uma camada de lipídios, o que quer que tenha sido fagocitado começa a ser atingido por substâncias que destroem paredes celulares e proteínas.
Neutrófilos são as primeiras células a responderem a uma inflamação. Tipicamente têm em sua membrana proteínas receptoras que são capazes de reconhecer (ligar a uma molécula e ativar a célula a que pertence) moléculas comuns entre patógenos. Patógenos são todos os microrganismos capazes de causar uma doença no corpo (Pathos = doença; Genos = gerar).
Ao reconhecerem alguma dessas moléculas, o neutrófilo pode iniciar uma fagocitose, ou soltar as substâncias tóxicas presentes nos seus grânulos especializados. Esses grânulos são organelas(pequenos órgãos) contendo substâncias tóxicas que ajudam a eliminar organismos invasores.
Anticorpos também são reconhecidos pelos neutrófilos, e os ajudam a fagocitar patógenos que normalmente não são capazes de reconhecer.
Ao serem ativados, neutrófilos também podem soltar substâncias para atrair as outras células do sistema imune.
Normalmente passam por apoptose depois de esgotar a capacidade de seus grânulos ou fagocitar uma certa quantidade de microrganismos.
Apoptose é o processo pelo qual as células se “suicidam”, para que possam ser destruídas e reaproveitadas, para fins de renovação do corpo.
Macrófagos se originam a partir dos monócitos presentes no sangue. Ao deixarem a circulação e migrarem para um tecido(órgão) tornam-se macrófagos, que possuem diferentes especializações dependendo do tecido em que se localizam. De maneira geral, possuem as mesmas capacidades básicas, e são células altamente especializadas em fagocitose. Assim como os neutrófilos, os macrófagos têm proteínas receptoras em sua membrana que reconhecem diferentes moléculas e ativam a célula.
Porém macrófagos são maiores, têm uma capacidade de fagocitose maior, e são mais duradouros. Também são responsáveis pela fagocitose de restos de células mortas, contribuindo para a renovação do organismo. Neutrófilos que passam por apoptose são fagocitados por macrófagos, por exemplo. Por fim, também ajudam na sinalização do sistema imune e são células apresentadoras de antígeno, ativando o sistema imune adaptativo.
Eosinófilos são células especializadas no combate a parasitas. Normalmente também estão relacionadas com as alergias, e com os danos causados nessas situações. Ao serem ativadas, liberam no seu entorno uma série de substâncias tóxicas, a fim de destruir as células do parasita. Essas substâncias são bastante tóxicas para as próprias células humanas, e são o que causam os danos em alergias.
Basófilos são pouco compreendidos por conta da dificuldade em estudá-los. Seus números são muito pequenos na circulação. O que sabemos é que tem um papel importante na imunidade contra parasitas liberando citocinas e histamina, e que também está envolvido nas reações alérgicas.
Mastócitos ficam localizados em tecidos que estão em contato com o ambiente externo, como por exemplo na pele e nos pulmões. Podem reconhecer uma grande quantidade de antígenos, e para cada um deles liberar uma diferente citocina para causar uma resposta imune específica. São muito importantes por produzirem esses sinais e iniciarem uma resposta inflamatória e atrair as outras células do sistema imune.
Células Dendríticas são especializadas na captura e processamento de antígenos, por fagocitose e outros processos. Ao capturar uma proteína, faz a sua quebra em partes menores e as acopla à uma proteína em sua membrana chamada MHC. A partir de então, migra para o sistema linfático e apresenta os antígenos processados, dando início à resposta imune adaptativa, um papel fundamental para a resposta imunológica do corpo humano, e estas células são especializadas especificamente nessa função.
A célula Natural Killer (NK) é classificada no sistema imune inato, e participa de uma maneira diferente das outras. Ela ataca células que não possuem em sua membrana um número suficiente de proteínas MHC. Isso acontece porque células infectadas ou tumorais (mutantes) produzem um número reduzido dessas proteínas, seja porque os vírus forçam a produção de proteínas virais, seja porque uma mutação altere as proteínas MHC ou diminuam sua produção.
Células NK também atacam células que produzem proteínas que se liguem a seus receptores de ativação.
Início da resposta imune
Quando um agente patógeno (agente causador de doença) invade o corpo humano, ele é detectado pelas células do órgão, macrófagos, mastócitos e células dendríticas locais, que enviam um sinal para começar uma inflamação. Esses sinais são moléculas que atuam como “chaves” para proteínas receptoras específicas, que quando ativadas fazem com que sua célula tenha algum comportamento específico. Dentre eles existem as citocinas, proteínas que servem especificamente para direcionar o movimento das células.
Os sinais de uma inflamação normalmente são o inchaço, aumento da temperatura, vermelhidão (causada pela dilatação dos vasos sanguíneos), e dor. É importante para a defesa, pois cria uma barreira física para impedir que a infecção se espalhe, e cria um ambiente favorável para a chegada e atividade das células de defesa.
Com a atividade de produção de citocinas, dos mastócitos, macrófagos e células dendríticas, as outras células imunes e principalmente os neutrófilos são atraídas. As proteínas receptoras nas membranas fazem com que as células imunes sigam na direção onde há um maior número de citocinas. Há diferentes tipos de citocinas para cada célula. Se for o caso de uma alergia ou uma reação a um parasita, por exemplo, citocinas específicas para eosinófilos poderão ser produzidas para atraí-los até o local.
Células dendríticas e macrófagos podem usar moléculas, ou parte delas, dos corpos estranhos que fagocitaram e apresentá-las para o sistema imune adaptativo.
Resposta imune adaptativa
As células dendríticas são as grandes especialistas em apresentar antígenos para outras células usando sua proteína MHC. Apresentar um antígeno significa uma célula que ligou um antígeno à sua proteína MHC, e esse aglomerado encontra uma proteína receptora em uma célula T ou B, e se liga a ela, ativando essa segunda célula.
Após realizar uma fagocitose e acoplar antígenos às suas proteínas MHC , ela então se direciona para o sistema linfático, onde encontra os diversos tipos de célula T e B. Macrófagos e células B também são capazes de apresentar antígenos.
Somente as células T e B que tiverem um receptor que reconheça o antígeno apresentado serão ativadas(e não através de um discurso motivacional acompanhado de fotos). Uma vez ativadas, podem se multiplicar e migrar para onde forem necessárias. Somente quando ativadas essas células podem fazer sua função. Células Naïve são simplesmente células que nunca tiveram seu antígeno específico apresentado antes, o que significa que nenhum aglomerado de antígeno+proteína MHC conseguiu se ligar à sua proteína receptora por não ser compatível. As células apresentadoras de antígeno circulam no corpo até conseguirem encontrar uma célula T ou B que consiga se ligar a ela. Há celulas Killer, Helper e B naïve. A Naïve apresentada em Cells At Work no episódio 3 (primeira temporada) é uma T Killer Naïve.
Células T Killer são as responsáveis por eliminar células que estejam infectadas. Isso quer dizer que não atacam diretamente vírus, por exemplo. Após se multiplicar e migrar para o resto do corpo, essas células buscam antígenos iguais aos que a ativou e, quando encontram, usam proteínas especiais que causam a destruição do conteúdo do interior da célula contendo antígeno, levando à sua morte.
As T Helper atuam usando diversas citocinas para ativar células T Killer e B, atrair as células imunes apropriadas aos locais necessários, e fazendo com que algumas células T e B se tornem células de memória. Além disso, otimizam a atividade de neutrófilos e macrófagos contra bactérias.
Células B têm a capacidade de produzir os famosos anticorpos quando são ativadas. Os anticorpos se ligam ao tipo de antígeno que foi apresentado à celula B, e produzem dois efeitos importantes. Primeiro, os anticorpos têm a possibilidade de impedirem organismos invasores de afetar outras células ao se ligarem neles. Além disso, podem se ligar a mais de um antígeno, podendo em alguns casos manter juntos vários desses organismos. E segundo, facilitam a ação das outras células imunes que encontrem anticorpos ligados a antígenos. A fagocitose, por exemplo, é muito facilitada pelos anticorpos.
Quando as células B e T se multiplicam depois de serem ativadas, algumas das células resultantes se tornam células de memória. Essas células continuam vivas por longos períodos de tempo no corpo humano, e permitem que o sistema imune reaja imediatamente após encontrar um antígeno para o qual já tenha uma célula de memória. Essas células são as grandes responsáveis pelo efeito duradouro das vacinas, e por alguém que já teve catapora nunca mais ser afetado pela doença, por exemplo.
Uma adição recente ao elenco de Cells At Work, as células T Regulatory, ou reguladoras, são as responsáveis por diminuir a atividade do sistema imune adaptativo quando necessário, por exemplo, ao final de uma infecção. São também responsáveis (embora não sejam as únicas) por uma atividade essencial, que é a prevenção da auto-imunidade (quando o sistema imune ataca células do próprio corpo, denominada uma doença auto-imune – Lúpus é um grande exemplo).
Comentários
Cells At Work mostra as células imunes cooperando para enfrentar ameaças, e isso realmente ocorre. Porém, as células em alguns casos são um pouco diferentes do que o mostrado:
- Neutrófilos não atacam células infectadas: sua principal função é eliminar bactérias e fungos. Com a ação de anticorpos, conseguem também atuar na fagocitose de vírus
- Células infectadas por vírus são alvo das células T Killer e NK
- Normalmente, células T e B reagem a apenas um antígeno: isso significa que para cada organismo invasor diferente será necessário uma nova célula T ou B (representado no final do episódio 3 pela incapacidade da célula naive ativada de reagir contra uma infecção por um vírus diferente)
- Células B têm uma participação bem mais expressiva com seus anticorpos, que melhoram muito a atividade das outras células
- T Helpers são normalmente mais diretamente envolvidas, entrando em contato direto com as outras células
- Timócitos (episódio 9) são eliminados quando reagem a células comuns do corpo(o que foi representado pelo alçapão sem fundo). A estatística dada pelo instrutor é real, apenas uma pequena porcentagem dos timócitos sobrevive ao processo de seleção.
- Macrófagos são mais flexíveis, mas também atuam melhor quando há anticorpos.
- Eosinófilos são muito fortes. Os danos causados pelas reações alérgicas em parte se devem a eles. Mas realmente só se envolvem contra parasitas e em alergias porque a sinalização necessária para fazerem os eosinófilos participarem acontece na maior parte das vezes nessas situações
A precisão das representações é muito boa, mesmo com essas pequenas diferenças, que são justificáveis tanto pela licença poética quanto para a necessidade facilitar a construção da narrativa e da caracterização dos personagens. A escolha da boina em formato de hemácia, por exemplo, é muito adequada para o uniforme da nossa protagonista.
A escolha pelo uso do humor também é fundamental para isso: Uma retratação mais fiel seria bem mais próxima de um cross-over de Shingeki no Kyojin e os mangás de terror de Junji Ito.
Imagine batalhas constantes e desgastantes, com milhões de mortes e suicídios assistidos, em um cenário completamente composto por indivíduos vivos costurados uns aos outros(que é mais ou menos como as células da nossa pele e órgãos ficam grudadas). Hataraku Saibou funciona bem melhor do jeito que é.
Texto por Ponya
Complemento e Artes Oficiais
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