O tema da natureza é um assunto bem forte nas obras de Hayao Miyazaki. De algum modo ele aparece em filmes como Ponyo ou A Viagem de Chihiro, mas é em Princesa Mononoke (Mononoke Hime) aonde o conflito “homem x natureza” atinge o seu pico. Vamos entender um pouco mais do que se trata esse filme e o que significa esse conflito que move o filme.
E claro, este review está livre de spoilers. A ideia aqui é acrescentar alguns pontos e curiosidades que podem incrementar a experiência de quem assistir pela primeira vez.
UMA FANTASIA HISTÓRICA
O cenário de Monoke Hime se passa num Japão tipicamente feudal, embora o filme jamais seja explícito nisso. Como o sabemos então? Se prestarmos atenção em alguns detalhes dos personagens principais e de onde eles vêm, tudo fica claro.
ASHITAKA
O Príncipe Ashitaka, um dos protagonistas, se anuncia como alguém que vem de ”terras longínquas do Leste”. E no vilarejo de onde ele parte para sua jornada, os anciões (muitos deles barbados, o que é incomum no Japão) mencionam serem “os últimos dos Emishis”, destruídos e expulsos para o Leste pelo Imperador há 500 anos.
“Emishi” é um dos nomes para os Ainu, um dos povos nativos do arquipélago japonês. O assunto é um pouco complexo, até porque nem mesmos os estudos começaram a esgotar o assunto, mas se trocarmos em miúdos, o arquipélago japonês era dividido entre os Yamato-jin (povo de Yamato, ou descendentes do Imperador) e os Ainu (chamados pelos Yamato-jin de Emishi ou Ezo).
Na medida em que o Japão fortaleceu suas instituições imperiais e consolidou seu poder pelos bakufus (primeiro com Kamakura, no século XI), esses povos eram pouco a pouco empurrados mais para leste, subindo a norte de Honshu (a ilha principal) e em direção à atual região de Hokkaido (a ponta acima no mapa próxima à Sibéria).
Uma última curiosidade sobre Ashitaka: volta e meia se pergunta se ele tem algo haver com o shogun Ashikaga Yoshiteru (1536 – 1565), o último shogun dos Ashikaga que viveu durante o Sengoku Jidai. A semelhança é mera coincidência, como acontecem com muitos nomes japoneses. Pelo que foi escrito até agora, deu pra perceber que o mundo dos shoguns e o mundo dos ainu estão separados como água e óleo.
EBOSHI GOZEN
Apesar de Eboshi ser uma figura completamente fictícia sem qualquer semelhança à alguma figura factual na história japonesa, isso é apenas uma verdade se levarmos em conta semelhanças literais (como em aparência ou nomes). Mas como ideia, Eboshi é uma antagonista (ou anti-heroína, tudo isso é bem discutível) que incorpora a noção de “progresso” e do humano dominando a tecnologia para dominar a natureza e os seus pares.
No caso dessa personagem, temos duas perspectivas de “progresso” postas em jogo. Um progresso histórico e um progresso na visão do próprio Hayao Miyazaki. Como alusão histórica, o uso de arcabuzes é uma referência óbvia a Oda Nobunaga, daimyo que fez um uso pioneiro de armas de fogo em batalha, derrotando exércitos bem mais prestigiados que o seu. Foi como o que aconteceu na batalha de Nagashino, em 1575, onde fileiras de armas aniquilaram a famosa cavalaria Takeda. Em Mononoke Hime, o paralelo se sustenta, pois o vilarejo consegue se manter e se proteger graças ao domínio da tecnologia de seu tempo.
Durante as guerras do Sengoku Jidai, esses arcabuzes recebiam o nome de “tanegashima”, pelo nome da mesma ilha onde os portugueses começaram a comercializar essas armas com os japoneses em 1543.
O CONFLITO “HOMEM X NATUREZA” E A BUSCA DA HARMONIA
A outra noção de progresso nos leva ao cerne do conflito que move o filme, o conflito “homem x natureza”. É verdade que a vila de Eboshi é a fonte do mal que ataca o vilarejo de Ashitaka; e é verdade que sua vila também é responsável pelo desmatamento da natureza e pela extinção de tribos de animais. São esses feitos que trazem a ira de San, a Princesa Mononoke.
Mas nada é tão simples assim. Se Eboshi faz um ataque feroz à natureza, ela o faz pelas pessoas que abriga. É graças à vila onde a miséria (que é a regra numa era de guerras como a Sengoku Jidai) se transforma em prosperidade com a venda de ferro.
E é nesse lugar onde pessoas que normalmente seriam incapazes de autonomia por conta própria, ganham autonomia e um lugar de destaque naquele meio. Não só os homens guerreiam com lanças e espadas; mulheres guerreiam com armas e mantem a produção de ferro em dia. É delas que provem a sobrevivência daquele lugar e aquilo que o torna único.
E mesmo os enfermos encontram abrigo, enquanto mantém sua dignidade ao poderem contribuir com a comunidade. É de seu trabalho artesanal que vêm as armas que protegem a vila. Então o progresso que a humanidade dá ao dominar a natureza é definitivamente algo a ser considerado e Miyazaki faz questão de evidenciar isso ao longo do filme.
Mas a pergunta principal de Hayao Miyazaki que é a principal engrenagem que faz este filme girar é esta: de quanto vale todo o progresso que a humanidade é capaz de prover se ela acabar matando a fonte de toda a vida? De que vale o progresso se sua busca matar a nós e o mundo no meio do caminho?
A figura do príncipe Ashitaka é a de alguém que reconhece tanto a importância da natureza, como ensinado por sua terra natal que cultua e protege a natureza, como é capaz de reconhecer o bem feito na vida de tantas pessoas graças à tecnologia. A importância dele no filme é a de ser um personagem que busca algo maior que o equilíbrio; em uma palavra, Ashitaka busca e luta pela harmonia.
Grosso modo, Mononoke Hime se trata disso. Ele é uma mensagem de Hayao Miyazaki para que saibamos usar o que construímos para melhorar nossas vidas, ao mesmo tempo em que saibamos respeitar e apreciar a natureza que acolhe a todos nós. O que busquei escrever aqui foi mais um apanhado de curiosidades, pois a história do filme é simples e o que ele tem a oferecer, animações e músicas dizem mais que palavras.
Afinal, em se tratando de Studio Ghibli e Hayao Miyazaki, quais descrições de animação ou direção ou trilha sonora, na companhia consagrada de Joe Hisaishi, podem ser feitas além de: absolutamente maravilhosas?