Uma das presenças de maior renome na história do Anime Friends, Shinichiro Watanabe, diretor de clássicos como Cowboy Bebop e Samurai Champloo, presenteou dezenas e mais dezenas de fãs com uma longa e detalhada história de sua trajetória como diretor, amante da animação e do cinema em geral. Seus paineis no Auditório Ultra do Anime Friends 2025 foram divididos em três partes, uma para cada dia: sexta, sábado e domingo. Na primeira parte, vimos uma biografia do diretor por ele mesmo. Os detalhes mais você confere agora!
Ao início do painel, foi exibido um vídeo com toda a filmografia de Watanabe: Macross (1994), Cowboy Bebop (1998), Cowbvoy Bebop: O Filme (2001), Animatrix (2003), Samurai Champloo (2004), Genius (2007), Sakamichi no Apollon (2012), Space Dandy (2014), Zankyo no Terror (2014), Blade Runner (2017), Carole and Tuesday (2019), Taisu (2024) e Lazarus (2025). Os aplausos eram constantes, principalmente em trabalhos mais conceituados como Cowboy Bebop, Samurai Champloo e Carole and Tuesday. Os pés do diretor, como é de costume entre viciados em música, acompanhavam a batida e o tempo da faixa de fundo do vídeo.
ORIGENS E INFÂNCIA
Finda a exibição, as origens. Shinichiro Watanabe nasceu e cresceu em Kyoto, a capital imperial do Japão. Mas como nem só de templos e palácios é feita a cidade, as longínquas montanhas nas periferias foram o primeiro universo do diretor. Em suas próprias palavras, um lugar isolado, sem ônibus ou qualquer coisa pra fazer. Meus ouvidos podem ter me traído, mas chegou ao ponto do diretor ter mandado um “文化もない” pra descrever sua terra natal. Como não sou doido para insinuar que Watanabe disse que vivia num lugar “sem cultura”, prossigamos.
Tensai Bakabon

Como é o caso de muitas pessoas que não encontram lazer na vizinhança, os desenhos animados foram seu primeiro amor. Tensai Bakabon, uma comédia pastelona e bem recheada de humor nonsense, viraria até inspiração para Space Dandy, em 2014. O anime passava na TV à altura dos 7 anos de idade de Watanabe. Já na sua época de ensino fundamental, como não podia ser diferente da geração dos anos 70, veio a paixão pelos filmes de ação. Era a era de ouro de Bruce Lee, imortalizado pelo clássico Operação Dragão e pela sua morte prematura e repentina, aos 32 anos. As crianças dessa época viviam de imitar Bruce Lee e Watanabe não foi exceção: fez de improviso um nunchaku na expectativa de brincar, mas que na realidade apenas lhe rendeu hematomas de tanto que o brinquedo o batia de volta. O nunchaku saiu, mas o gosto pelos filmes de ação ficou. Eventualmente, Watanabe conheceu a faceta filosófica de Bruce Lee, a qual ele incorporou em produções como Cowboy Bebop.
Lupin The Third (1977)

A seguir veio Lupin III, inegável pilar da animação japonesa. Foi exibida a primeira abertura, de 1971, para aqueles que talvez ainda não conhecessem a obra. Além da continuação pelo gosto por ação, Lupin III ainda carregava um tom mais maduro em seu enredo, segundo o diretor. Mas mais que isso: sem vergonha nenhuma de declarar suas paixões, Shinichiro Watanabe não hesitou em afirmar seu fascínio por motoqueiras graças à Fujiko, personagem icônica da série! Do estereótipo “gatas motoqueiras”, me veio à cabeça a Eva de Metal Gear Solid 3. Em Lazarus, a Christine Blake encarna muito bem essa inspiração. Prosseguindo nas inspirações cinematográficas, os trejeitos de Robert de Niro em O Poderoso Chefão 2 viraram cacoete do jovem Watanabe nos anos finais do ensino fundamental. Dirty Harry, de Clint Eastwood, também pendeu seu gosto mais para o cinema nessa época.

OS GOSTOS MUSICAIS E A ESCOLHA DE CARREIRA
Falou-se dos filmes e desenhos favoritos. Mas antes de falar sobre sua decisão de virar diretor, Shinichiro Watanabe prestou um tempo considerável para falar de sua primeira paixão musical, o Yellow Magic Orchestra. O nome não é tão conhecido no Brasil, mas o trio revolucionou o cenário musical no Japão nos anos 1970 de um jeito bem parecido que o Kraftwerk revolucionou a música, criando a música eletrônica pelo mesmo princípio: trazendo as máquinas para o rol de instrumentos musicais disponíveis para a composição.

O diretor apresentou o maior hit do grupo para a plateia, Rydeen e passou um bom tempo tecendo elogios para a genialidade do trio composto por Haruomi Hosono e os saudosos Yukihiro Takahashi e Ryuichi Sakamoto. Curiosamente, uma entrevista riquíssima com o ex-guitarrista do Japan, Masami Tsuchiya, passou por estes olhos com um depoimento direto sobre o impacto que o Yellow Magic Orchestra teve na geração de Shinichiro Watanabe. Depoimento este cujo trecho gostaria de passar ao leitor:
“Lá pelo começo dos anos 70, o conceito de música eletrônica começou a tomar forma e me atraí nele de forma bem natural. Eu já ouvia bandas como o Ultravox, que já incorporavam sintetizadores e sons eletrônicos em suas músicas e eu fiquei fascinado pelas possibilidades. Naquela época, o Yellow Magic Orchestra estava começando a experimentar sons similares. Eles empurraram fronteiras de maneiras nunca antes feitas, usando máquinas, ao invés de instrumentos tradicionais, para fazer música. Foi um conceito corajoso e revolucionário, e levou um tempo para que as pessoas entendessem isso bem. Nós ainda tocávamos rock’n roll, mas o jeito como o criávamos, usando tecnologia, era revolucionário. Foi desafiador para a indústria aceitar, mas era uma nova direção bastante animadora. O mundo foi lento para entender no começo, as gravadoras do Japão estavam mais confortáveis com o mesmo rock tradicional, então o conceito de technopop foi difícil de ser absorvido. Mas a musicalidade do Yellow Magic Orchestra era inegável. Hosono, Takahashi e Sakamoto estavam entre os melhores músicos do mundo; e apesar deles não usarem instrumentos tradicionais, seu uso de máquinas era tão inovador quanto seus talentos, se não mais. O que as pessoas tinham mais dificuldade de entender é que, a despeito das máquinas, nós ainda tocávamos rock. Não era algo puramente eletrônico ou puramente rock; era algo inteiramente novo – uma fusão que levou tempo para que a indústria e o público pudessem apreciar.” (tradução do autor)

Era a esse tipo de novidade sem precedentes que Shinichiro Watanabe estava sendo exposto na adolescência, como bem descrita por Tsuchiya, que chegou a tocar com Ryuichi Sakamoto antes dele integrar o Yellow Magic Orchestra, possivelmente o primeiro grupo idol masculino do Japão, se esticarmos bem essa definição. Lógico que não é esse o caso, mas impressiona ver um quase moe moe kyun usado na década de 80! Eventualmente, a história do Yellow Magic Orchestra e de Ryuchi Sakamoto, em especial, rebarba com o Brasil, uma vez que Sakamoto realizou várias colaborações com a cantora Taeko Onuki, talvez uma das cantoras pioneiras no uso da língua portuguesa em composições musicais no Japão.
Vem enfim os tempos de ensino médio, onde mais do que nunca somos confrontados com A Questão: o que faremos de nossas vidas? Com o que trabalharemos? O horizonte do cinema já era claro para Shinichiro Watanabe. Mas qual tipo? Os filmes ou a animação? A dúvida flutuou na cabeça do futuro diretor por um tempo, até o dia que veio a resposta em forma de animação: Urusei Yatsura 2: Beautiful Dreamer. Watanabe tirou uns dois minutos de sua apresentação para mostrar ao público exatamente a cena de Urusei Yatsura que fez com que ele tomasse sua decisão pela animação. E aqui vale outra disgressão, que tentei explorar numa entrevista com o diretor: apesar de ser inspirado por filmes de ação e ser bem conhecido pelas cenas ricas de ação feitas em Cowboy Bebop, Samurai Champloo e, mais recentemente, Lazarus, o ouro de Shinichiro Watanabe também mora em suas cenas de contemplação. Cenas onde o universo daquela obra se impõe sobre o expectador e somos arrancados de onde estamos para sermos absorvidos por aquela obra e sua mensagem. Todas as obras citadas neste parágrafo possuem este elemento contemplativo. Qualquer dúvida, assistam o episódio 8 de Lazarus, pois lá mora o ápice de Watanabe.
E essa abertura de Urusei Yatsura mostra exatamente esse lado de Watanabe; muito para a minha surpresa, que assistiu empolgadíssimo o remake de 2022, mas que não viu algo perto do que viu durante o painel: uma cena sublime, que expõe um mundo além das caretas do Wataru e dos trejeitos da Lum. Um mundo que não é apenas palco para os personagens, mas um mundo que, antes de tudo, É um mundo. Esse ponto será brilhantemente reforçado em seu painel de sábado, mas guardemo-os para depois.
Da sua decisão para ser um diretor de animação, o papo convergiu para alguns conselhos breves sobre direção: Watanabe enfatizou a importância de assistir várias e várias vezes seus filmes favoritos, para assim reparar os pormenores de sua produção. Do mesmo jeito que reparamos algo de novo num livro que pegamos para reler. Respondendo a uma pergunta da interlocutora, Watanabe comentou que a parte mais difícil de sua carreira foi no começo, quando a carga pesada de trabalho em City Hunter o fazia passar a noite no estúdio às vezes. Também comentou a dificuldade de trabalhar com Macross Plus. Em suas palavras, “o staff todo era bem doido”. Aproveitando os minutos finais de sua apresentação, foi dada a pressa para um en passant sobre suas produções.
COMENTANDO SEU TRABALHO
Como seu trabalho em City Hunter foi, por assim dizer, “trabalho de peão” (envolvendo carregar peso pra lá e pra cá inclusive) e Macross Plus foi uma co-direção envolvendo muito arranca-rabo com o staff de lá, Watanabe começou pelo seu primeiro trabalho plenamente autora: Cowboy Bebop. Ali ele nos confidenciou que o anime passou por sérios problemas de financiamento. Seu primeiro patrocinador, uma empresa de puramo (plastic models, “““brinquedos””” com todas as aspas possíveis), esperava um anime que pudesse vender action figures. Eles ouviram algo sobre exploração espacial, naves e imaginaram que Cowboy Bebop seria algo como Star Wars. Os desfechos dessa história ficariam para o dia seguinte. Antes de passar para sua próxima produção, Watanabe respondeu a uma dúvida, enfatizando que ele busca de antemão decidir que tipo de história ele quer contar, evitando assim de se perder em suas várias referências.
Comentando sobre Animatrix, ali Shinichiro Watanabe aproveitou para expor seu já conhecido desdém por Hollywood. A oportunidade para trabalhar numa versão em anime de uma das maiores franquias do cinema moderno foi atraente. Ainda mais sob as promessas de completa liberdade criativa. Porém, as promessas ficaram no papel. A enxurrada de palpitaria e intervenções em seu trabalho fez nascer um ranço por Hollywood. Para Samurai Champloo, Watanabe quis sair do convencional, uma vez que tudo que poderia ter sido feito de filme samurai já havia sido feito e mais um pouco. Desde Akira Kurosawa! A ideia? O hip-hop. Ideia absurda para os produtores, mas agora Watanabe podia dar a carteirada de ser O diretor responsável por Cowboy Bebop. Seu gosto por hip-hop veio graças aos talentos de Nujabes, que trabalhou em Samurai Champloo e faria história com seu estilo único, replicado por fãs até formar o que conhecemos hoje como lo-fi. Shinichiro Watanabe expressou seu desejo de trabalhar novamente com o Nujabes em novas produções, num telefonema, mas três meses depois viria o acidente de carro que ceifaria prematuramente a vida deste grande talento.
Nos finalmentes, Watanabe também comentou sobre a adaptação de Sakamichi no Apollon (Kids on the Slope), a única adaptação onde o diretor trabalhou, mas que faz muito seu estilo por ser uma obra centrada na música. Space Dandy causou confusão na cabeça de seus fãs, que estavam mais acostumado a um estilo mais sério de animação. O que estes fãs não sabiam, como os presentes neste painel souberam, é que Watanabe cresceu assistindo e amando o humor nonsense de Tensei Bakabon, que foi replicado em Space Dandy; o trabalho que, segundo o diretor, ele mais se divertiu em fazer. Para contrabalancear, pois geralmente os animes de Watanabe oscilam entre a comédia e o drama, nasceu Zankyo no Terror. Ele é um pouco mais pesado do que o comum, então o diretor encerrou seu painel brincando, recomendando que se assisti-se os dois ao mesmo tempo, intercalando um episódio de cada vez.
O QUE ESPERAR?
Na próxima matéria desta série sobre a visita de Shinichiro Watanabe no Anime Friends 2025, vocês verão mais detalhes sobre os problemas envolvidos na distribuição de Cowboy Bebop e a maneira criativa como o diretor lidou com elas!