Durante a Bienal do Livro do Rio 2025, um dos debates mais animados aconteceu na Praça Além da Página Shell. O painel “Experiência Quadrinhos: Uma Jornada Visual e Criativa” promoveu um encontro potente entre diferentes gerações e perspectivas sobre os caminhos da produção de HQs, webtoons e mangás no Brasil. Participaram da conversa o publisher e produtor Gabriel Wainer (Funktoon), o quadrinista e professor Rapha Pinheiro (INKO – Escola de Mídias Criativas) e a escritora e youtuber Wlange Keindé.
Para Rapha Pinheiro, sua relação com os quadrinhos foi tardia, mas decisiva: “Eu não sou aquele cara que aprendeu a ler com o Maurício de Souza. Eu comecei a ler e me encantar por quadrinhos velho, tipo, 16, 17 anos. Eu tinha 20 e poucos anos quando comecei a estudar pra fazer quadrinhos”. Ele falou com entusiasmo sobre o poder do quadrinho como linguagem: “Tem uma frase que eu gosto muito, que tenta comparar o tempo do quadrinho com o tempo do cinema e da animação: o quadrinho temporiza o espaço e o cinema e a animação espacializam o tempo”.
Wlange Keindé, por sua vez, destacou a trajetória de leitora e criadora que seguiu caminhos não lineares. “Eu tinha um super-herói, o Mr. Man, um bonequinho de palito que tinha uma capa e usava faixa no olho, como as Tartarugas Ninjas, e ele fazia cenas de luta”, relembrou. “Depois testei videogame no RPG Maker, teatro com minhas irmãs… Fui testando jeitos de contar histórias antes de me tornar uma leitora mais atenta de quadrinhos.” Para ela, a riqueza está na diversidade de formas de contar: “Gosto de ver as diferenças, as possibilidades. E consumir diferentes mídias é fundamental para quem cria”.
Gabriel Wainer compartilhou a transição entre o audiovisual e os quadrinhos, revelando um olhar prático e apaixonado: “Eu não sou uma pessoa dos quadrinhos, me tornei. Porque eu consegui transformar um quadrinho num filme. E fui me apaixonando cada vez mais”. Ele ressaltou o alcance da produção nacional: “Hoje eu tenho certeza absoluta de que a quantidade de quadrinhos produzidos no Brasil é infinitamente superior à de filmes. É muita gente criando”.
Um dos temas mais vibrantes do painel foi a democratização do quadrinho como meio de expressão. “O quadrinho é barato de fazer”, disse Rapha. “Não que a gente ganhe muito, mas em comparação ao cinema… Uma batalha alienígena na Amazônia custa o mesmo que dois personagens conversando num banco, no papel.” Gabriel completou: “A liberdade criativa do quadrinho é difícil de encontrar no cinema, principalmente no cinema brasileiro”.
Ambos defenderam o potencial do quadrinho digital para romper barreiras. Gabriel destacou a sua plataforma Funktoon, que abriga milhares de obras nacionais: “Outro dia vi um quadrinho incrível de um cara do Acre. Sem o digital, talvez ele nunca chegasse aqui”. Ele ainda mencionou o sucesso do mangá Sense Life, que começou online, teve mais de 2,5 milhões de leituras e hoje já soma 12 mil exemplares vendidos em formato impresso.
A relação com o público também foi tema da conversa, especialmente a partir do trabalho dos três convidados em redes sociais e plataformas como YouTube. “Quando meu canal chegou a 200 mil inscritos, eu pensei: ‘Caramba, tem toda essa gente interessada em literatura e escrita?’”, contou Wlange. “É um impacto real na vida das pessoas, e na minha também.”
Rapha também compartilhou sua experiência com a criação de conteúdo digital. “Comecei a fazer vídeos quando fui estudar quadrinhos na França. Descobri que entendia menos do que achava e quis compartilhar esse aprendizado. E percebi que tinha público pra isso”. Ele apontou como as redes sociais geram impacto direto no mercado: “Pessoas que talvez nunca fossem ler quadrinho nacional vão na minha mesa e dizem: ‘Você é o cara da internet! Qual é o seu livro?’”.
Entre trocas sinceras e reflexões afiadas, o painel mostrou como os quadrinhos seguem sendo um espaço de liberdade, resistência e experimentação. Como resumiu Rapha: “O quadrinho ainda é marginal, ainda é de guerrilha. E isso é bom. Porque ele continua sendo um espaço de crítica, de ideia, de transformação”.
A conversa também tocou em um ponto essencial para o futuro do quadrinho brasileiro: o incentivo ao consumo desde a infância. Gabriel compartilhou uma experiência pessoal que resume bem esse ideal. “Eu tenho um filho de 8 anos e estou fazendo o letramento dele com quadrinhos. Mas o mais legal é colocar um quadrinho nacional na mão dele. A criança não tem o preconceito que o adulto às vezes tem. Ela vai ler pela qualidade da história. Isso é poderoso demais. Outro dia a gente passou na mesa do Guilherme Souza e meu filho falou: ‘papai, olha aqui, aquele que a gente leu!’. É uma troca que precisa começar agora.”
A valorização dos artistas brasileiros foi outro ponto forte do painel. Rapha trouxe uma analogia potente para refletir a realidade dos criadores visuais: “A gente tem no Brasil o que eu chamo de Fuga de Nanquim. Artistas incríveis que vão trabalhar fora porque não encontram espaço aqui. Aí o cara é publicado lá fora, traduzido e republicado aqui, e só então passa a ser lido. Mas ele estava aqui o tempo todo. Leiam artistas nacionais, visitem o Artists’ Valley aqui na Bienal!”
Em meio a tantas possibilidades, o painel não fugiu de um dos tópicos mais delicados da criação artística contemporânea: a presença da inteligência artificial. Para Keindé, que tem feito testes com ferramentas de IA, ainda falta o essencial. “Apesar de a IA conseguir entregar histórias com começo, meio e fim, elas caem numa coisa rasa, muitas vezes previsível. Falta profundidade humana. E aí eu me pergunto: se você quer se expressar, por que delegar isso a uma IA? A arte vem da gente, da nossa experiência.”
Gabriel concordou: “Você chegou no ponto. Se você quer se expressar, por que deixar alguém se expressar no seu lugar?” Já Rapha dividiu o debate em dois planos: “Do ponto de vista comercial, é um problema sério. IA barateia o custo e ameaça nossa profissão. Mas do ponto de vista artístico, já era. A IA não tem voz. Ela só reproduz. E a arte é a voz do artista. Então, nesse campo, ela é vazia. Não tem alma.”
A reflexão de Gabriel sobre o avanço da IA veio com um toque de ficção científica: “É curioso. Eu adoro sci-fi, mas nunca vi um filme em que a IA se expandisse pela arte. É sempre com robôs, e eles têm voz, se expressam. Quando (e se) ela tiver consciência e começar a se expressar por si só, aí a gente conversa. Por enquanto, é chato.”
Um momento de emoção veio com a pergunta de um jovem da plateia sobre como ingressar no mercado diante das dificuldades, inclusive frente à IA. Rapha respondeu com uma pitada de humor, prática e autopromoção: “Acompanhe o canal da Wlange, se matricula na INKO e publica no Funktoon! Ela ensina a escrever no canal. A gente tem uma escola que os alunos saem publicados depois de seis meses. No Funktoon você vai chegar nas pessoas. É acessível, é democrático, é de graça. A gente tem alunos nossos publicados, indicados a prêmios, aqui no Artists’ Valley da Bienal. Estou identificando um ex-aluno meu aqui na plateia, que até foi indicado ao Jabuti no ano passado, mostrando para vocês que tem caminhos. O caminho é estudar, criar e publicar. ”
Wlange reforçou a importância da formação e do contato: “E não só por meio da gente. Lógico que ficaríamos felizes, mas vocês têm que estar em eventos, conhecer outras pessoas, ver o que estão criando. Estar em comunidade é muito importante.”
E a palavra comunidade ganhou o centro da conversa nos minutos finais. Gabriel destacou a rede que se forma ao redor da leitura e produção de quadrinhos nacionais, citando a LQN (Lendo Quadrinhos Nacionais) e autoras como Magic, que publica obras como Last Lilith e Pris Trela. “Tem uma galera muito ativa trocando ideias, aprendendo junto. Isso ajuda demais a perder o constrangimento, a se desenvolver.”
Rapha encerrou em tom emocionado: “Chegamos numa resposta. A resposta é comunidade. Que bonito. Que legal.”
O painel “Experiência Quadrinhos” não apenas celebrou o quadrinho como linguagem artística, mas lançou uma mensagem clara: criar histórias visuais é um ato de resistência, de partilha, e de conexão. E, como demonstraram os convidados, essa jornada criativa só é possível e muito mais rica quando trilhada em conjunto.