Voltamos com mais um mangá artístico da Pipoca & Nanquim, mas desta vez saímos do desenho e vamos para a música. Assim, o Primeiro Gole de hoje é sobre Fire, uma história antiga, mas progressista.
Quem escreveu a obra foi Hideko Mizuno, pioneira e “madrinha” do shoujo como conhecemos hoje. Na verdade, se esse gênero é do jeito que é, a responsável por isso é essa mangaká. Afinal, Hideko foi uma das primeiras pessoas a retratar o amor romântico nos mangás, algo que era considerado um tabu.
Além disso, a autora se inspirou nas obras de Osamu Tezuka, ganhando elogios do autor e destaque profissional com apenas 15 anos de idade. Primeiro, suas produções eram ambientadas na Europa medieval, com personagens femininas de personalidade forte.
Então, em 1969 ela criou Fire, história que surgiu da sua paixão por rock progressivo, cultura hippie, contracultura, sua oposição à Guerra do Vietnã e luta contra o racismo. O mangá se tornou um sucesso absoluto e conquistou o prêmio Shogakukan em 1970.
Agora, Fire chega ao Brasil pela Pipoca & Nanquim em dois volumes que abusam das cores e estilo dos anos 70, com um verniz localizado tão detalhista que impressiona. A capa é realmente muito chamativa e diferente de todas as outra publicações da editora que já vimos até agora.
Mas então, a história é tudo isso mesmo? Vamos conferir.
Enredo
Neste mangá conhecemos a história de Aaron, um jovem que mora nos Estados Unidos e, por um mal-entendido, acaba indo para um reformatório. Nesse lugar horrível e cheio de pessoas cruéis, Aaron conhece Fire Wolf, rapaz culpado por sua detenção que acaba se tornando sua inspiração.
Com Wolf, Aaron encontra refúgio na música, aprende a cantar e tocar violão, além de valorizar a liberdade de ações e pensamentos.
Anos depois, quando finalmente saiu do reformatório, Aaron se vê sozinho na cidade de Detroit, tentando sobreviver trabalhando em uma fábrica. Assim, ele conhece John, um músico que o apresenta às noites da cidade.
Então, desejando espalhar a filosofia de Wolf para o mundo e defender a liberdade, Aaron conhece outros músicos e forma a banda Fire. Entre conflitos internos, sabotagens, desilusões amorosas e amizades verdadeiras, a banda é um sucesso absoluto.
Porém, Aaron conseguirá se manter fiel aos seus princípios e cantar apenas para perpetuar o legado de seu amigo, ou se deixará levar pela ganância e jogos de poder do universo artístico?
Obra do século passado
Primeiro de tudo, vou falar sobre o traço marcante da história.
Ela foi feita em 1969, então o desenho é um retrato perfeito da época. Tirando algumas excessões, os personagens têm traços simples, sendo que os homens possuem maxilares bem quadrados e as mulheres são quase um risco no papel, de tão finas. Junto a isso, o cenário também não é dos mais elaborados.
Reforço que essas características não são críticas, apenas para você ler não esperar os padrões modernos que temos hoje.
Além disso, existem alguns pontos problemáticos sobre a relação entre homens e mulheres, mas esse é outro ponto que faz parte do contexto da época em que foi escrito.
Pontos negativos e positivos
Fire é uma história inspiradora, de jovens que batalham diariamente para conseguir sobreviver ao dia seguinte e achar seu lugar no mundo. É quase refrescante ver essa defesa tão acalorada da liberdade, luta contra autoridades e movimento hippie dos Estados Unidos.
Além disso, tal como em Mandala de Fogo, em Fire também existe a difícil tarefa de transmitir pelo desenho as sensações da arte. Hideko conseguiu expressar isso em várias cenas, desenhando paisagens, objetos outros elementos lúdicos que transmitissem o ritmo, tom e sentimento das músicas e das pessoas em volta.
É bonito de ver a música em desenhos, uma verdadeira sinestesia.
Por outro lado, achei que Aaron é um personagem meio raso. Sim, ele canta e vive sua vida em prol da liberdade, mas talvez isso seja ofuscado pela infantilidade extrema dele. Não sinto que sua motivação pra cantar seja tão forte e palpável assim.
Também achei que as coisas aconteceram muito rápido. A banda se tornou um sucesso tão rápido e tão sem empecilhos que ficou meio superficial. Quase não dá tempo de torcer por eles, de sofrer as angústias, de aguardar o que está por vir, pois tudo simplesmente acontece.
Outra coisa um pouco delicada é a forma com que Hideko aborda a luta contra o racismo. Existe sim a intenção de combater esse preconceito, de mostrar a gravidade da discriminação e as injustiças absurdas que a comunidade negra sofre.
Porém, alguns diálogos são duros de ler. A intenção da autora foi boa, mas talvez a execução não foi das melhores.
Tenha essa mesma sensação com outros aspectos do mangá, que Hideko quis transmitir algo interessante, mas falhou na sua execução.
Expectativas
Não é à toa que Fire foi muito premiado. Pra época, tem pautas inovadoras, quebra alguns tabus, tem esse movimento jovem, rebelde e libertador. Além disso, é o começo do shoujo como conhecemos hoje, então tem um peso indiscutível e uma relevância histórica que precisamos reconhecer.
Mesmo assim, mantenho minhas críticas, principalmente em relação ao Aaron. Ele é um garotinho impulsivo, irritante e brigão, que não conseguiu me cativar muito. Além disso, ele trata as mulheres da pior forma possível, bem clássico dos shoujos antigos que a gente sabe serem meio problemáticos.
Enfim, meu primeiro gole desse mangá foi um pouquinho agridoce, mas fiquei curiosa para ler o segundo volume. Afinal, se no primeiro aconteceu tudo isso e a banda alcançou o sucesso, estou ansiosa pra ver os perrengues e dramas que os meninos vão enfrentar na sequência.