Suco de Mangá conversou com Victor Hime, produtor musical que trabalhou na versão definitiva de Árida. Conversamos sobre a relação com games, o trabalho sonoro na indústria e o futuro.

Para começar eu gostaria que você se apresentasse. Quem é o Victor Hime?

Eu sou produtor musical, comecei a minha carreira há 15 anos. Sempre trabalhei nos palcos, mas também dentro do estúdio e, de alguns anos para cá, tenho focado 100% do trabalho dentro do estúdio.

Eu auxilio produtores de mídia no geral a encontrar a identidade sonora dos projetos deles. Eu sou compositor de trilha sonora para filmes, estudei isso na faculdade, e caminhei lentamente para o mercado dos games.

Basicamente sou produtor musical e resolvo problema de áudio para a galera.

Como começou a sua relação pessoal com os games?

Vamos voltar lá atrás, então! (Risos)

Será que podemos considerar Tamagochi um jogo? Essa foi uma das primeiras experiências com um device na mão. Mas, o Nintendo foi um caminho importante, sempre fui muito conectado. A minha base de games é Nintendo. 64, Cube, Wii.

O primeiro console que tive em casa foi da Nintendo, nos anos 1990, depois migramos para o PlayStation 1 e 2 e eu me lembro que no PS2 entrei de cabeça em jogos de corrida, como Gran Turismo e Need for Speed.

Mais adulto, jogo muito Civilization, acho sensacional. Do PS2 para cá, eu joguei mais no PC. O PlayStation 3 e 4 era mais a época do meu irmão mais novo, a gente curtia juntos.

Mas a minha infância foi basicamente japonesa.

Como começou a sua carreira nos games?

Comecei a trabalhar com jogos em um jogo educativo, de forma despretensiosa. Um colega falou: “olha, a gente precisa de alguém para trabalhar no sound design e na música de um jogo de uma start-up, você não quer fazer?”

Eu fui bem honesto e falei que já tinha trabalhado com filmes, propaganda, teatro, dança, banda, mas game eu nunca tinha feito. Eu falei que: “vamos tentar e a gente vê como sai.”

E o que era uma entrega de dez dias, virou um projeto de dois anos. Dessa start-up me indicaram para outro jogo indie, para um jogo maiorzinho e comecei a fazer trailer, a desenvolver uma equipe, a Flutu Music e hoje nós somos em cinco pessoas e desenvolvemos jogos de todos os calibres — desde jogos AAA para a China até jogos superindies no Brasil, passando por clássicos como Árida, um projeto que finalizamos agora. A menina dos olhos.

Você curtiu muitas gerações de consoles. Como você vê a evolução da indústria?

Vou falar do áudio que é o que conheço mais. Até o PlayStation 2 existia uma limitação técnica do console em relação ao áudio. Nós tínhamos o sound card dentro do console e você tinha que colocar um código e os sons que estavam disponíveis naquele sound card iam ser disparados.

Nós tínhamos a capacidade de gravar e colocar lá, mas a memória que ocupava era muito grande. Era muito mais fácil programar um código e o sound card de cada console lia aquele som.

Então, por isso, você tem sons muito característicos. O som do Super Nintendo, o som do 64, do Mega Drive, do PlayStation 1.

Depois do PS2, começamos a ter, principalmente com o advento do .MP3, e a expansão da memória dos consoles, começamos a injetar tracks no jogo. O Medal of Honor foi o primeiro jogo com uma orquestra, do Michael Giacchino, dentro de um game. Era uma música mesmo.

Hoje em dia vivemos em um mundo onde o Koji Kondo teria arrasado de novo. Ele é o compositor do Super Mario, é o compositor chefe da Nintendo até hoje. Imagina que eles tinham que compor as músicas com três linhas melódicas.

Uma faixa de percussão, para acompanhamento harmônico e uma da melodia. Era tudo o que eles tinham. Quando pegamos a trilha do Super Mario conseguimos entender que o desafio criativo era como simplificar todas essas ideias. Como pegar uma orquestra enorme e fazer soar em três linhas melódicas.

Quando revisamos esse trabalho na visão de músico, é genial. É um trabalho espetacular. Fazer o simples soar rebuscado e deixar um legado, como a música do Mario.

Você falou que trabalhou no teatro, cinema. Quais as principais diferenças dessas mídias para jogos?

Cara, tem uma questão de tempo/espaço. Um filme tem um começo, um meio e um fim e você, se estiver vendo em casa, pode pausar e continuar depois, mas a proposta é que você sente e consuma.

Já um o jogo pode durar 20 horas, 15 horas, e o produtor nem quer que você passe de uma vez ali, né? Então, a árvore de decisão de um expectador de um jogo é muito diferente de um expectador de cinema.

Por exemplo, o expectador não pode escolher voltar para o começo do filme porque se não ele não vai passar dali para frente. O filme não para. Tipo “olha, você não entendeu o começo do filme, por isso, vamos pausar e você vai ter que voltar até lá.”

Já no jogo, a gente tem essa possibilidade. A gente trava o jogador porque daqui para frente, ele precisa ter esse, esse e esse item. Para ele conseguir, vai ter que voltar e aí nessa volta, toda experiência sonora é pensada.

É o que chamamos de mídia linear e mídia não-linear. Isso já é um desafio técnico bem interessante. Você tem que dizer para os programadores e game designers, quais vão ser as reações da música naquele ambiente.

Vai ser através de um trigger? A gente coloca isso na engine e quando ele cruza esse  portal, dispara a música. Mas se ele estiver indo para um caminho errado, voltando por onde não deve, ao invés de tocar a música a gente quer indicar que ele está indo para o caminho errado. Aí vai ter algo um grande lugar vazio, sem música, sem item.

Isso era muito feito no Zelda. A primeira vez que você passava lá tinha tudo, depois era só uma sala.

Como essa indicação é feita para o jogador?

Nós temos no som, formas de indicar para o jogador. A música, como eu falei, é uma ferramenta. Vamos imaginar uma cena: você está em uma vila, feliz, tipo a vila do Pokémon, e quando você entra em uma das salas, a música deixa de ser alegra e vira algo de ação, que indique que vai ter alguma ação.

Ou seja, é dizer para o jogador que ele vai passar por algo que ele não está esperando. Outro caminho é com efeitos de som com o que chamamos de reforços positivos e negativos.

Quando você entra em uma sala e coloca um som mais agudo, é positivo, você fez algo correto. Ou quando é para o grave é algo mais negativo, que indica que não era a decisão certa.

Nós somos um pedacinho do que é o desenvolvimento do jogo. Jogamos o game indicamos para o produtor, designer, diretor do jogo, ideias. Nós falamos “posso falar uma coisa?” É bem assim (risos) “na minha humilde opinião tem espaço para isso, isso, isso e isso”.

Nós explicamos o porquê e aí os produtores analisam isso e é muito interessante porque eles realmente fazem isso. A música e som é muito única para quem tem essa experiência e poucos diretores e produtores vão ter a visão de como engrandecer a narrativa e a gameplay através do som. É óbvio que todos têm uma visão geral, mas nós (da Flutu) temos uma visão específica desse assunto.

Lembrei de um exemplo do Árida: quando a Cícera está com fome ou com sede, a imagem da cena, antes, ficava craquelada e a HUD piscava. Mas quando estávamos jogando, a gente não percebia que ela estava chegando em um estado crítico.

Nós chegamos e falamos sobre colocar um som no momento em que a Cícera entra em um estado crítico. Vamos mudar a sonoridade do jogo, e passamos a abafar todos os ambientes, sons dos bichos e colocamos um som de batimento cardíaco, com ela respirando mais forte.

Fizemos isso para indicar ao jogador que ele precisa tomar uma decisão em relação a isso.

Como começou esse trabalho com a Aoca?

Desde 2019 eu queria colaborar com a galera da Aoca. Eles misturam tecnologia, jogabilidade com a cultura brasileira, com a música e eles dão muita importância para a experiência sonora do jogador, então era um projeto que eu estava de olho há um tempão para colaborar juntos.

Graças a esse trabalho que nós (a Flutu) estamos fazendo, eles nos convidaram.

Como foi o convite para trabalhar com essa versão definitiva de Árida?

Durante a Gamescon na Alemanha eu falei para eles: “gente, quando tiver a oportunidade de colaborar com vocês estou superinteressado e disponível para trabalhar com o Árida. Era muito desprentensioso, mas depois de um ano rolou.

Victor também falou sobre o início do trabalho com Árida.

Árida foi lançado em 2019, mas conforme um jogo vai ganhando repercussão, eles vão ganhando atualizações constantes. Seja arte, ports para outros consoles, – Árida foi lançado originalmente na Steam – eles perceberam que no mobile tinha espaço para esse conteúdo e a versão da Steam ficou congelada, enquanto o mobile teve atualizações.

No final dessa produção, eles retomaram a versão da Steam e “portaram” para outros consoles. Nessa reestruturação do jogo, eles perceberam que poderia ter um polimento maior no áudio.

A Aoca não tem uma equipe interna de áudio, e tiveram outros dois estúdios antes, de pessoas extremamente competentes, que fizeram um excelente trabalho, mas conforme o jogo foi avançando algumas mecânicas ficaram sem som e outros detalhes.

Quando a Cícera tirava o facão acontecia um fade e ela cortava a árvore. Agora não, ela tira da bainha e corta um pé de mandioca, por exemplo. Então, como agora tem uma animação, é preciso sonorizar isso.

Passamos a entender o que podia melhorar no áudio, que já estava excelente, ressignificar o sound effect do jogo, gravar músicas novas do jogo e algumas canções foram feitas com instrumentos virtuais e, na minha visão, o Árida tem que ser o menos virtual possível.

Fizemos esse retrabalho de regravar as composições com instrumentos reais. Por exemplo, o violão do diálogo entre a Cícera e o Tião foi gravado no estúdio. Colocamos uma sanfona, isso e aquilo, porque o nordeste não é feito de instrumentos virtuais e sim de músicos reais vibrando a cultura nordestina.

O nordeste tem uma cultura muito rica e diferente de São Paulo, onde moro, e Rio de Janeiro, onde você nasceu. Como foi o trabalhar com uma cultura tão distinta?

Foi feito com muito carinho, entrega. Pelo que é a música e a cultura brasileira. Nota por nota, foi feito nota por nota.

A música nordestina compõe parte do que é a nossa essência e identidade como músico e produtor musical no Brasil. Eu sempre me identifiquei, não foi algo novo para mim ou para a minha equipe.

Eu sou muito fã do Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil. Todos esses mestres da música brasileira, que são do nordeste, mostraram a riqueza dali e fazia parte do nosso vocabulário musical.

Mesmo assim, sempre tivemos um olhar de retratar a música e como é a música no sertão, próximo de Canudos. Foi feito um trabalho de pesquisa, principalmente guiado pelo pessoal da Aoca.

Tem um compositor que chama Gereba Barreto, fenomenal, que é de da região de Canudos e isso mostrou para gente das diferenças de ritmo. Por exemplo, do baião do Gonzaga para essa região.

Outro grupo que nos inspirou foi o Sagrama, bem conhecido na época de O Auto da Compadecida, que fala bastante da música regional nordestina.

Indo para a parte final da entrevista agora, vamos falar sobre o futuro da indústria. Muitas evoluções tecnológicas estão surgindo, como, Realidade Aumentada e Realidade Virtual e IA, que está aparecendo em diversas mídias. Como você vê o futuro do som na indústria de jogos?

É… Pergunta pretensiosa. Eu sou muito otimista, eu sou a favor das evoluções tecnológicas, não tenho problema com o uso de inteligência artificial dentro do processo criativo.

Acho que é legal e diferente. Vi uma entrevista da Björk falando que a eletricidade ta aí desde o ano 0. O uso de computadores em arte é uma consequência do advento da eletricidade, então a gente não pode limitar o que é ou o que não é música e arte só porque está sendo feito com uma mídia diferente.

Desde que ela seja feita com a intenção de passar uma mensagem. Eu acho que essas ferramentas facilitam muito o processo de produção. Ela não vai fazer a música, porque pô, eu quero fazer. É a parte mais legal, né? (risos).

Mas é legal de ver como algumas ferramentas podem ajudar. Tem algumas coisas muito mecânicas no nosso trabalho, por exemplo a importação de falas. Imagina, você tem 2 mil falas que é preciso clicar, arrastar, soltar, alterar o nome. Repete 2 mil vezes.

Esses tipos de engodo, a IA vai vir para facilitar, além de dar outras ideias.

Nos consoles, não temos limitações. É muito raro jogos que pedem para diminuir a música, porque as formas de compressão são excelentes. Chegamos na era ultra tecnológica para games.

A Aoca está desenvolvendo o Árida 2, vocês estão envovidos no projeto? Já tem algum próximo trabalho?

O Árida 2 está sendo desenvolvido e a previsão de lançamento é para 2024. Ainda não estamos envolvidos na produção do áudio porque a Aoca prefere deixar mais para frente e temos outros projetos que não podemos comentar muito.

Algumas franquias da China que estamos produzindo, mas também não posso falar muito. Do Brasil, estamos trabalhando em Mark of the Deep, da Mad Mimic. Um metroidvania 2.5D.

Estamos trabalhando também com a GoGo Games. Com eles, trabalhamos colado em todos os lançamentos deles. Fazemos o polimento, somos o departamento de música e som deles. Tem trazido muita variedade de estilos para a Flutu.

E quais os próximos passos do Victor?

O meu futuro é continuar o trabalho que estamos fazendo. Estava falando com a minha esposa sobre como é legal ocupar um lugar onde os seus estudos, conhecimento e habilidades somam para uma equipe.

Seja horizontalmente com outros estúdios, quanto verticalmente na própria Flutu Music, mentorando novos designers, compositores e técnicos. Mostrar os caminhos e processos para trabalhar com áudio para jogos.

Buscar novos contatos aqui na Europa, Estados Unidos, China. Temos participado de muitos eventos e criado o nosos também. Temos a conferência chamada Game Audio Track, fizemos ano passado em Lisboa e esse ano foi em São Paulo, no BIG. Provavelmente via ser lá ano que vem também.

Assim, aquela ambição de mostrar para os desenvolvedores que a Flutu Music garante que existe parceiros que eles podem contar que vão ser muito cuidadosos com o áudio deles. Para que a decisão deles só tenha que ser sim ou não.

Alguma franquia que gostaria de trabalhar?

Tenho algumas ambições no mercado de jogos, por exemplo, Civilization. Se eu pudesse fazer o Civilization VII, meu amigo… eu vou ser um cara realizado. Mistura muito a música étnica, que é algo que artisticamente me dediquei.

Eu sou o cara que gosta de ouvir música de tribos da África, com gravação antiga. O Mário de Andrade viajou por São Paulo e Minas gravando músicas locais e eu tenho esse disco, escuto. Então, Civilization é um jogo que permite imergir em outra cultura que enriquece a jogabilidade e a mim enquanto outra pessoa.

Por último, quer deixar uma mensagem para o pessoal que acompanha o Suco de Mangá?

Queria agradecer a galera do Suco por receber a gente e poder contar com vocês para mostrar o resultado do nosso trabalho. Nós queremos mostrar que os grandes sucessos e clássicos não deixaram a música e efeitos de lado, sempre foi muito pensado. Foi algo pensado, decidido e vamos colocar um compositor aqui.

Então a mensagem que eu deixo é: usem fones de ouvido (risos).

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