José Renato Fernandes
    José Renato Fernandes
    Um ser humano multifacetado: estudioso de Letras; analista literário de vídeo jogos; tradutor e intérprete; entusiasta de jogos de luta; batedor de cabeça em shows de metal; e materialista histórico dialético.

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    Silent Hill | Suco Apresenta

    Halloween tá chegando! Nessa época do ano passado, resolvi fazer uma maratona com todos os jogos da série Resident Evil (quer dizer, todos os jogos que eu considero bons o suficiente para entrarem numa retrospectiva, ignorando coisas bizarras como Operation Raccoon City). Já em 2024, nós temos a outra grande franquia de horror ressurgindo das cinzas com o remake de Silent Hill 2. Sendo assim, achei por bem revisitar este bastião do survival horror com um olhar mais crítico. Como foi o nascimento da série Silent Hill?

    Eu joguei o primeiro jogo da série Silent Hill, lançado em 1999, lá quando eu ainda estava no Ensino Médio, e vou admitir uma coisa: eu TREMIA de medo desse jogo. Quando a excelente trilha sonora produzida por Akira Yamaoka chegava com seus ritmos industriais pesando fortemente na mente dos jogadores, o Renato de 2002 simplesmente desligava o jogo, tamanho o estresse que o compositor traz em sua paisagem sonora.

    silent hill 1999
    Imagem Divulgação

    No entanto, o Renato de 2024, finalmente jogando novamente o Silent Hill original todos esses anos depois, enxerga uma experiência um pouco mais inconsistente do que era capaz de enxergar lá no passado. Ainda assim, é um jogo potente, que vai numa direção muito diferente do que a maioria dos survival horrors da época costumava ir, principalmente se comparado à trilogia Resident Evil.

    Silent Hill acompanha a história de Harry Mason, um pai de família que encontrou sua filha na beira da estrada nas proximidades da cidade de Silent Hill. Quando a garota, Cheryl, completa sete anos de idade, ela pede, do nada, que ele a leve à cidade de Silent Hill para passar férias. No caminho, uma garota adolescente aparece em frente ao carro na estrada, forçando Harry a bater o carro para tentar se esquivar. Ao acordar, percebe que Cheryl não está mais no carro, e então encontrá-la se torna sua principal missão no jogo.

    O que mais me chamou atenção, jogando depois de adulto, é o quanto a primeira hora do jogo ainda é impecável. Todo mundo que conhece um pouquinho da história dos jogos de terror vai se lembrar bem claramente da introdução de Silent Hill. Você acorda nessa cidade enevoada, e ao andar alguns passos à frente, vê uma silhueta parecida com Cheryl. Harry chama por ela, mas é ignorado. Você corre em direção a ela, apenas para vê-la sumir para dentro da névoa múltiplas vezes, te guiando em direção a um beco. Daqui pra frente, é só pra trás.

    silent hill 1999
    Imagem Divulgação

    Ao adentrar um portãozinho para dentro deste beco, a primeira coisa a chamar a atenção é uma poça de sangue e tripas bem à sua frente, sem explicação alguma. Quanto mais pra dentro do beco você anda, mais esquisita vai ficando a trilha sonora e os ângulos de câmera que acompanham Harry. Você passa a ouvir uma sirene à distância. O mundo fica escuro e coisas ainda mais estranhas, como uma cadeira de rodas e uma maca de hospital ensanguentada, aparecem dentro deste beco. No final dele, um corpo ressecado pendurado nas grades e o chão coberto de sangue esperam por Harry, que é imediatamente atacado por três monstros parecidos com crianças, com facas na mão. Sem armas e sem defesa, não adianta nem voltar em direção à saída do beco, pois a realidade não é confiável neste lugar: o beco se fecha e a única saída é ser morto pelas criaturas.

    Como a realidade não é confiável, este não é o fim da linha para Harry, que acorda numa lanchonete acompanhado da policial Cybil Bennett. Infelizmente, a presença dela não adianta de nada em termos de esclarecer o que está acontecendo na cidade, já que ela parece estar tão perdida quanto você. Após um diálogo surreal daqueles que apenas o voiceover de jogos de Playstation 1 pode criar, Cybil te dá uma pistola (o que me parece muito temerário vindo de uma policial, mas ok, vamos deixar rolar) e você retoma o controle. Neste momento, uma das cenas mais icônicas do horror do Playstation 1 acontece: ao tentar sair da lanchonete, o rádio que está em cima de uma das mesas começa a emitir estática num volume altíssimo. Ao verificar, Harry é surpreendido por uma espécie de monstro-pterodátilo atravessando a janela.

    silent hill 1999
    Imagem Divulgação

    A partir daqui, a primeira parte do jogo tem uma jogabilidade e objetivos simples: Harry quer encontrar sua filha explorando a cidade, que é um “mundo aberto” cheio de névoa e monstros. Aqui é onde a genialidade da série Silent Hill está no seu pico.

    Em primeiro lugar, a decisão de cobrir Silent Hill de névoa, que é brilhante em unir o útil ao agradável. Qualquer um que estava por aqui quando o Playstation 1 reinava sobre o território dos games vai se lembrar que, apesar do reinado, o hardware do PS1 não era exatamente o mais capaz de criar gráficos super realistas, principalmente em representação de longas distâncias, onde o console simplesmente não era capaz de renderizar muito longe sem sua taxa de quadros cair absurdamente, com seus míseros 33 MHZ de processador e 2 MB de memória RAM. Mas e se os desenvolvedores se inspirassem em “The Mist”, do Stephen King, e cobrissem a cidade de névoa? Assim, temos uma justificativa diegética para não conseguirmos ver um palmo à frente do nariz, temos uma inspiração literária, e conseguimos manter um nível de realismo dos gráficos superior à boa parte da biblioteca do PS1, com a taxa de quadros caindo só pra 15 FPS!

    silent hill 1999
    Imagem Divulgação

    Quanto ao ciclo de jogabilidade: o jogador conta com um mapa da cidade e está livre para explorar como se fosse um “mundo aberto”. O mapa também é uma mecânica muito importante, pois Harry faz anotações em seu mapa conforme você vai explorando. Ele marca o beco onde fomos atacados pelas crianças, e então este se torna seu primeiro objetivo. Ao chegar no beco, ao invés de encontrar cenas grotescas e crianças assassinas, encontramos um caderno de desenho com os dizeres “para a escola” escritos com a letra de Cheryl. Então, Harry marca a escola no mapa como seu próximo objetivo. Ao tentar alcançar a escola, no entanto, fica claro que as ruas da cidade estão todas bloqueadas por abismos intransponíveis, deixando claro que o “mundo aberto” de Silent Hill não é tão aberto assim. Rapidamente percebe-se que a única passagem para a rua da escola é através de uma casa, cuja porta dos fundos está trancada com três fechaduras, e aí a gente precisa explorar a cidade para encontrar três chaves. Desta forma, toda essa primeira parte do jogo consiste em explorar as ruas desoladas e atmosféricas de Silent Hill procurando o caminho.

    Isto é, até entrarmos na escola, que é de longe o ponto mais alto do jogo. Aqui, não somos apresentados a muita construção narrativa da história do jogo ainda, mas temos uma área de dois andares onde temos que resolver múltiplos quebra-cabeças, tanto literais quanto espaciais. Logo na recepção da escola, você já encontra três cadernos escritos em sangue, com três horários no topo e dicas crípticas para avançar seu progresso. Pode parecer um pouco estranho dizer que explorar um prédio todo escuro com vários enigmas que envolvem interpretação de texto e coisas bizarras acontecendo é uma experiência de jogabilidade genial, mas realmente é. (Apesar de que não sei como a molecada fazia nos anos 90 sem traduções e sem saber inglês…)

    silent hill 1999
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    Claro que o ponto alto da experiência é que várias bizarrices isoladas vão acontecendo em certos pontos da exploração pela escola, que certamente foram suficientes pra fazer o Renato de 2002 imediatamente desligar o game. Por exemplo, quando entramos em um dos banheiros da escola e claramente se ouve uma pessoa chorando dentro de um dos mictórios. Ou quando o silêncio dá vez a pancadas industriais como se estivéssemos dentro de uma fábrica, sem nenhum motivo aparente para a intensidade extra. Ou talvez quando resolvemos o quebra-cabeça da torre do relógio e ouvimos a sirene novamente, indo parar no mesmo pátio, porém com a escola totalmente transformada, seus pisos normais trocados por grades sobre um abismo interminável. Ou a sala dos armários…

    Mas porque digo que a escola é o ponto alto da experiência? Logo após matarmos o lagartão, monstro principal da escola, o mundo volta ao estado enevoado do início, e ouvimos um sino de igreja na distância. Ao alcançarmos a igreja no nosso mapa, encontramos Dahlia Gillespie, e a narrativa do que aconteceu para justificar todas as bizarrices que já vimos até então toma o centro das atenções, e aí é que sinto que a experiência se perde um pouco.

    silent hill 1999
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    O que o resto do jogo nos conta? Bem, senta que lá vem história. 14 anos atrás, a cidade de Silent Hill contava com um culto religioso liderado por Dahlia Gillespie, culto este que dominava a população da cidade através da venda de uma droga alucinógena e altamente viciante chamada White Claudia. O plano do culto é (e prestem atenção nisso) conjurar o arcanjo Samael. Para tanto, Dahlia faz um ritual para engravidar, e, através de magia negra, fazer com que a criança nasça com a alma do arcanjo. No entanto, o ritual dá errado, e a criança, Alessa, nasce apenas com “metade” (???) da alma de Samael. Para controlar totalmente os poderes da menina e impedir que ela se tornasse uma adolescente desobediente, Dahlia põe fogo na criança, sabendo que o poder do arcanjo não permitiria que ela morresse, e através de controle do vício na droga, a mantém sob cuidados da enfermeira Lisa Garland.

    Com este controle, Dahlia bola o plano de ter mais uma criança com a segunda metade (???) da alma de Samael, e é bem sucedida. No entanto, sofrendo com a culpa de cuidar de Alessa, Lisa rouba a criança e a abandona na beira da estrada, onde nosso heroi Harry a encontrou sete anos atrás. Com o tempo, a garota passa a pedir ao pai para ir para Silent Hill, e assim chegamos no início do jogo. A garota adolescente da qual Harry tenta desviar na introdução é Alessa, e ao se encontrarem, as duas almas das garotas se fundem e finalizam a junção da alma de Samael, criando realidades alternativas onde o jogo todo se passa. O restante do jogo, então, é basicamente composto da tentativa de Dahlia de fazer Samael renascer, e o boss final é a representação do arcanjo Samael renascido.

    Essa explicação toda pareceu meio enrolada? Pois bem, essa é a minha explicação detalhada depois de terminar o jogo duas vezes. O jogo em si é beeeeeem mais complicado que isso, com diálogos em inglês quebrado, personagens agindo de maneira misteriosa, e cortes de realidade enviando Harry rapidamente entre Silent Hill enevoada e Silent Hill “pesadelo”. E tudo isso pra contar uma história onde todas as coisas sobrenaturais e bizarras que acontecem são explicadas através de um culto de seres humanos comuns querendo conjurar uma figura bíblica para… o que, especificamente? Vai saber.

    silent hill 1999
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    Por isso, acho que a segunda metade do jogo vai ficando cada vez mais desinteressante, juntando essa narrativa convoluta com a abundância de armas e munições que o jogo te dispõe, se você explorar com vigor. Elimina-se qualquer tipo de desafio e de aprofundamento na narrativa do jogo. Ainda assim, não é como se não houvessem momentos maravilhosos na segunda metade do jogo. A passagem pelo hospital é tão atmosférica quanto a exploração da escola, as transições entre realidades nas ruas são extremamente bem feitas para o hardware do PS1, e a ansiedade que a trilha sonora impõe ao jogador (especialmente com o zumbido bizarro quando estamos viajando entre o hospital e a loja de antiguidades, senhor amado) é muito opressiva, perfeita para o sentimento de horror que Silent Hill quer evocar.

    Finalmente, Silent Hill é o clássico atemporal de horror que esperamos? De muitas formas, sim. Mas é especialmente um ponto de partida importantíssimo para o que se tornaria a era de ouro dos survival horror, o período do Playstation 2, de 2000 a 2007, onde os grandes clássicos da série realmente se encontram.

    Silent Hill 2 Remake sai no dia 8 de outubro. Faça sua pré-compra na Steam e na PlayStation Store.

    José Renato Fernandes
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    Um ser humano multifacetado: estudioso de Letras; analista literário de vídeo jogos; tradutor e intérprete; entusiasta de jogos de luta; batedor de cabeça em shows de metal; e materialista histórico dialético.

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