É difícil de avaliar claramente para as novas gerações de jogadores o que foi o lançamento de Resident Evil 4, lá no longínquo ano de 2005. Os membros fundadores deste maravilhoso Suco de Mangá, que estavam presentes comigo na adolescência, vão lembrar com mais clareza como Resident Evil 4 era comentado.

Tempos conturbados para Resident Evil

A série Resident Evil havia atingido um período de declínio, após Resident Evil: Code Veronica ter feito pouco para evoluir em relação aos jogos do Playstation 1. Ainda, mesmo conseguindo muita boa vontade com o remake do primeiro game, lançado em 2002 exclusivamente para o Gamecube — que até hoje é para mim o ápice da série — essa boa vontade foi desperdiçada com Resident Evil 0, que jogou a série de volta ao limbo.

No entanto, Resident Evil 4, era um jogo completamente diferente.

Resident Evil 4
Imagem Divulgação

No entanto, os contratos de exclusividade fariam com que eu tivesse acesso ao jogo muito depois de seu lançamento. Apenas um amigo (pelo que me lembro) tinha um Gamecube na época, e ele nem mesmo morava na cidade. Então, dez meses depois, os amigos que possuíam Playstation 2 receberam um port, e assim eu consegui jogar o primeiro capítulo na casa de algum amigo.

Por fim, fui ter acesso ao jogo completo apenas em meados de 2007, quando lançaram um port grotesco para PC. Ele só tinha controles pelo teclado, sem mouse, e não tinha nenhum efeito de iluminação, fazendo o jogo parecer um borrão de cinza e marrom sem distinção alguma.

Eram tempos difíceis para quem jogava no PC. Mas, fazer o que? Eu acompanhei assim mesmo, e Resident Evil 4 foi, com o passar dos anos, se tornando um dos meus jogos favoritos.

Chegada do Remake

Sendo assim, foi com uma certa trepidação que recebi a notícia de que a Capcom estaria, nesta onda de remakes da série Resident Evil, finalmente alcançando o quarto título.

Vejam bem: Resident Evil 4 foi uma revolução, e não apenas para a série Resident Evil. Antes de seu lançamento, jogos de tiro em terceira pessoa eram como Tomb Raider, focados em desafios de plataforma ou enigmas. Ou eram como Max Payne, focados na ação e precisão de seu balé.

Após 2005, e nos quase 20 anos que se seguiram, é impossível encontrar jogos em terceira pessoa que não sigam o padrão de câmera “sobre o ombro” e controles que Resident Evil 4 introduziu. Até mesmo os remakes de Resident Evil 2 e 3, que gosto muito, trouxeram os jogos antigos para o padrão que Resident Evil 4 construiu. Logo, como fariam para revolucionar a indústria novamente?

Resident Evil 4
Imagem Diulgação

Bom, a realidade é que a Capcom nem tenta fazer isso, mas essa não é uma crítica. Meus medos foram infundados, pois mesmo sem tentar revolucionar nada, Resident Evil 4 Remake é um jogo simplesmente melhor que seu original. É uma nova versão que atualiza e conta de novo uma história antiga para seus jogadores mais novos.

Análise do jogo

Desta forma, dividirei este especial em duas partes: primeiro, uma defesa e descrição do que fazia o Resident Evil 4 original ser tão bom. Após, falarei sobre o que o remake melhora.

Há uma certa argumentação agora, em 2023, de que o Resident Evil 4 original é o “começo do fim” da série. Ou seja, o responsável pela sequência de erros que quase levou a série à morte.

O motivo da existência dessa argumentação é bem fácil de entender. Resident Evil 5 e Resident Evil 6 abandonam completamente o horror que os primeiros jogos da série traziam. Assim, se renderam à ação absurda e ininterrupta de jogos de ação militares estilo Call of Duty, e o 4 foi o ponto de partida que lançou a série em direção a essa trajetória.

Resident Evil 4
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Três mudanças entre os jogos

Jogando novamente o original para a elaboração deste especial, uma coisa ficou clara para mim, no entanto: Resident Evil 4 é surpreendentemente fiel às ideias e atmosfera da série num quesito mais amplo. A diferença é que ele chega no mesmo resultado de maneiras bastante diferentes.

Existem, basicamente, três grandes pilares de mudança entre o que chamo de “Resident Evil clássico” e o número 4.

Primeiro

O jogo é totalmente renderizado em 3D, ao invés de utilizar quadros pré-renderizados como background. Isso já havia sido feito em Resident Evil: Code Veronica, porém, sem trocar os ângulos de câmera fixos no processo. Além disso, neste jogo em particular, a troca de estilo de renderização resultou num jogo bem menos estiloso e com menos detalhamento em seus ambientes do que o Playstation 1 conseguia com suas imagens estáticas.

No entanto, o Gamecube, era bastante capaz de criar a atmosfera e lidar com uma grande quantidade de inimigos na tela, o que resulta num jogo muito mais bonito de se observar.

Resident Evil 4
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Segundo

Os ângulos de câmera fixos não existem mais, sendo substituídos por uma câmera posicionada diretamente atrás dos ombros de Leon, que acompanha seus movimentos e pode ser controlada pelo jogador.

Dito isso, os controles do jogo não tiveram alteração nenhuma, pois Leon ainda é controlado no estilo “tanque”. Ou seja, esquerda e direita fazem Leon girar no lugar ao invés de andar de lado, e você ainda precisa parar no mesmo lugar para mirar e atirar.

A grande mudança reside no fato de que Leon pode realmente mirar. Antigamente você só conseguia mirar mais ou menos pro lado onde o inimigo estava e o jogo acertava o inimigo por você. Já neste jogo você pode controlar exatamente onde atirar e os inimigos possuem animações específicas para cada lugar onde levam fogo.

Isso muda completamente o combate do jogo, já que agora podemos controlar com precisão as reações dos nossos inimigos, e controlar o ritmo das lutas.

Terceiro

Com o controle das reações dos nossos inimigos, é necessário que eles sejam mais ágeis para nos dar qualquer tipo de desafio. Os inimigos em, digamos, Resident Evil 2, são pouco numerosos em comparação com Resident Evil 4, e são lentos de maneira geral, para que o evitamento de confronto e a manutenção do inventário sejam mecânicas mais centrais na atmosfera que os jogos antigos queriam criar.

No entanto, com a nova precisão da mira os zumbis lentos precisaram ser substituídos por uma ameaça mais ágil e mais numerosa, para criar uma atmosfera opressiva em conjunto com o novo combate.

Finalmente, Resident Evil 4

Essas três mudanças nos trazem à introdução de Resident Evil 4, até hoje lembrada por como impactou a série.

Leon inicia a busca pela filha do presidente dos EUA a pé, sozinho numa vilinha espanhola, imaginando que seria uma operação investigativa. No entanto, assim que o primeiro Ganado tenta abrir sua cabeça com uma machadinha, somos introduzidos ao novo combate de maneira simples, apenas com alguns poucos inimigos.

Então, ao alcançarmos a praça central da vila é que temos um dos grandes momentos clássicos deste jogo, e onde ele apresenta sua essência. Uma sequência de ação de sobrevivência na qual o terror não vem de monstros que se escondem ou se esgueiram, e nem de um ritmo lento e atmosférico. Na verdade, vem de uma onda esmagadora de inimigos vindo com machados, tridentes e motosserras pra te abrir no meio, o terror psicológico dando lugar ao desespero imediato.

Resident Evil 4
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Uma pitada de comédia

Outra coisa que sempre gostei muito sobre Resident Evil 4 e é um pouco controversa é a mudança de tom. Como eu disse, não acredito na ideia de que RE4 se desfaz completamente do horror: ele apenas apresenta um tipo diferente de horror, focado nesse desespero de ter múltiplos inimigos rapidamente se aproximando.

Porém, ao mesmo tempo, RE4 também é um jogo que não se leva muito a sério. Isso fica bastante claro ao chegarmos no meu capítulo favorito, onde adentramos o castelo de Ramón Salazar.

Este vilão que é basicamente um anão com uma voz estridente tentando nos botar medo com suas pomposidades de Idade Média, mas falhando miseravelmente. Algumas das minhas interações favoritas são entre Leon e Salazar, como esta:

            Salazar: “Estou mandando meu braço direito para livrar-se de você!”

            Leon: “Seu braço direito sai do corpo?”

            Salazar: “Ahhh diga o que quiser! MORRA, SEU VERME!”

Resident Evil 4
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Essas sequências de diálogo nunca falham em me fazer rir, me lembrando de como horror e comédia costumam se misturar, especialmente em produções asiáticas.

E de terror

Essas passagens engraçadas são contrapostas com, por exemplo, a infame sala da água. Nela, dezenas de monges com boleadeiras e escudos vêm em sua direção e você deve defender a si mesmo e à Ashley enquanto resolve alguns puzzles leves.

Pouca coisa na série Resident Evil é tão desesperadora quanto cinco monges se aproximando e falando, em espanhol, “muere, muere, muere”. É um dos motivos pelo qual eu adoro este jogo.

Resident Evil 4
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Mesmo assim, não é como se o jogo não tivesse defeitos. Ele é um pouco longo demais, levando próximo de 25 horas para terminar pela primeira vez na dificuldade padrão. Ainda, o capítulo da ilha é, de longe, o mais chato. Mesmo que ele continue mantendo o equilíbrio entre horror e ação com a introdução dos Regeneradores, que sustento serem alguns dos monstros mais medonhos da série.

Sem dúvida, os quick-time events são a pior parte do jogo, especialmente na dificuldade Profissional. Afinal, você precisa apertar os botões que aparecem na tela na velocidade da luz ou você morre instantaneamente e não tem nenhum checkpoint manual.

Então, como o remake muda as coisas para melhor?

Comecemos pelo primeiro e mais importante aspecto: todos os quick-time events foram removidos do jogo, tirando aqueles contextuais durante combate. Já consigo ouvir o primeiro questionamento: mas sem nenhum quick-time event, como vão fazer a cena do Krauser?

Pois bem, meu caro leitor. Minha teoria é de que rebalancearam todo o jogo ao redor de montar uma luta contra o Krauser sem quick-time events, e isso foi a sacada de gênio da Capcom neste remake.

Resident Evil 4
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Para fazer a luta do Krauser funcionar, a Capcom deu a Leon um parry. Ainda, ele funciona contra qualquer ataque tirando balas ou foguetes, desde que Leon tenha algum tipo de faca disponível.

Agora, para balancear essa nova mecânica, a faca de Leon tem uma durabilidade específica, que se deteriora com uso normal, e principalmente com parries. Você também tem a capacidade de gastar a faca para escapar de ataques que agarram Leon.

Outra forma de balancear a nova habilidade é com a maior quantidade de inimigos, sua agressividade mais contundente e a menor eficiência das armas de controlarem os movimentos destes inimigos.

Resident Evil 4 remake na dificuldade Hardcore é consistentemente mais difícil que o original desta forma.

Resident Evil 4
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Novo tom em Resident Evil 4 Remake

Outra coisa que é muito diferente no remake é o tom. Para manter-se consistente com os remakes de RE2 e RE3, a nova versão do 4 aproximou o jogo do tom destes remakes. Ou seja, com uma paleta de cores mais escura, mais gore e menos coisinhas engraçadas.

Leon ainda tem uns one-liners engraçados, mas a atuação dos personagens agora é muito mais convincente. Especialmente relacionado aos dois personagens mais melhorados pelo remake: Ashley e Luis.

Dinâmica dos personagens

Luis Sera, o auto-declarado “ladies man” do jogo original, não tinha tanta relevância no jogo original, morrendo de forma exagerada e servindo apenas como alívio cômico.

Agora, Luis tem uma história um pouco mais elaborada, tendo trabalhado anteriormente para a Umbrella e procurando redenção após ver o uso que Saddler deu para as Plagas que ele ajudou a desenterrar e pesquisar.

Ele até mesmo acompanha Leon no que gosto de chamar de “fase do Donkey Kong” em RE4; a parte do carrinho da mina. Sua história também é muito mais envolvida com a participação de Ada Wong, que também teve suas partes ampliadas.

Resident Evil 4
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Ashley tem a maior transformação de todos os personagens. Não apenas Luis não aponta mais o fato dela ter peitos (sério, é um tanto cringe as partes em que Luis canta a filha do presidente), como Ashley também ganha muito mais agência no seu predicamento.

A princípio ela ainda é uma “damsel in distress”, e não deixa totalmente de ser. Porém, algumas cenas, como aquela na qual ela é capturada por um dispositivo no castelo, se torna bem mais sinistra quando no remake ela é possuída pela Plaga dentro dela e ameaça Leon com sua própria faca.

As interações entre os personagens são menos cartunescas e fazem bem mais sentido nessa nova versão.

Resident Evil 4
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Mais seriedade

Se há alguma coisa a se reclamar na transição para esta versão mais séria de RE4 é que o jogo se leva mais a sério do que antigamente, o que é um pouco decepcionante.

Afinal, Salazar e Saddler são vilões extremamente ridículos, e a pitada de comédia que o original trazia equilibrava um pouco as coisas, o que não acontece com a mesma frequência neste remake.

A Capcom também deu uma reduzida nas partes mais “Looney Tunes” do castelo: a maioria das sequências de ação que estavam presentes em RE4 ainda estão aqui. Contudo, algumas foram removidas, como a dos elevadores antes do castelo, a da estátua do Salazar te perseguindo e uma luta de chefes inteira no capítulo da ilha.

Mas e o remake de Separate Ways?

Resident Evil 4
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Bom, Separate Ways na versão original é um DLC que acompanha a jornada da Ada durante os eventos de RE4. Eu, particularmente, não gosto muito deste DLC. Ele é claramente mais “arcade” do que o jogo original, sendo mais um desafio de combate do que um complemento à história do jogo.

Inclusive, esta nem faz muito sentido, já que temos uma luta de chefe contra Krauser posicionada depois da luta do Leon. Assim, tira um pouco do efeito da morte do Krauser na campanha original. Felizmente, era apenas um DLC curto, terminável em 4 ou 5 horas.

A versão remake de Separate Ways é substancialmente maior e mais elaborada. É uma DLC bem longa, levando por volta de 10 horas para terminar, e conta com muito mais detalhes o caminho de Ada pela história de Resident Evil 4.

Várias das coisas que os fãs sentiram falta foram colocadas em Separate Ways. Por exemplo, a sequência dos elevadores foi ampliada, e a luta contra o chefe do capítulo da ilha que foi cortada do original se tornou várias lutas de chefe com um monstro estilo Nemesis na campanha de Ada.

A sequência do corredor de lasers também foi colocada de volta, junto com um novo monstro que você não pode enfrentar diretamente.

Resident Evil 4
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Conclusão

Consigo dizer, por fim, que minhas preocupações sobre a direção que a Capcom tomou, de levar a onda de remakes até o quarto jogo, eram infundadas. Assim como os remakes de RE2 e RE3, o novo jogo da série é, para mim, um dos melhores de 2023, e mantém a franquia de pé.

Mesmo assim, vale muito a pena revisitar o jogo original e experimentar as mudanças que foram feitas. Resident Evil 4 realmente levou a franquia ao topo do precipício, mas este também foi um de seus ápices.

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