Um andarilho “sem-morada” que vaga pelo Japão esperando o dia de sua morte, conhecido pelo seu assovio, que lembra o sopro gélido do fim de outono. É sobre ele que o mangá Kogarashi Monjirou: O Prenúncio do Inverno conta, numa publicação adulta da Pipoca & Nanquim.
Sobre a obra
Essa história possui 50 anos de fama no Japão, publicada originalmente em 1972 como um romance por Saho Sasazawa. Então, logo em 1972, o desenhista Goseki Kojima — famoso por ilustrar Lobo Solitário — transformou essa história em mangá.
O gênero dessa obra retrata pessoas à margem da sociedade, conteúdo muito consumido pelos japoneses no século 20. Então, o surgimento do personagem Kogarashi Monjirou foi uma verdadeira febre no país, com crianças se vestindo e imitando esse andarilho misterioso.
Contexto histórico
Além disso, a história retrata um período muito marcante na história do Japão, a Grande Fome da Era Tenpou (de 1833 a 1839). Esse período de dificuldade gerou grandes mudanças no país, como o enorme fluxo de pessoas migrando do campo para as cidades, em busca de um oportunidade para viver.
Consequentemente, muitas pessoas se tornaram marginalizadas, sem moradia fixa, ou ocupação. Essas pessoas passaram a ser chamadas de “toseinin” termo traduzido nesse mangá como “andarilho”. Assim, Monjirou, o protagonista dessa história, é um andarilho que retrata e encara um pouco da dura realidade vivida por japoneses no passado.
Claro, a Pipoca & Nanquim está sempre pensando em dar ao leitor a melhor experiência possível, então no fim do mangá tem uma seção apenas para falar sobre todo o contexto histórico da obra. Também, como de costume, colocou a biografia dos autores, Goseki Kojima e Saho Sasazawa, assim como um glossário com informações importantes.
Vale ressaltar que esse glossário não traz somente informações indispensáveis, ou significados de termos totalmente desconhecidos. Ele contém explicações sobre datas festivas, contexto histórico e até informações geográficas. Novamente, parabenizo e ressalto o ótimo trabalho de Drik Sada, tradutor da obra e responsável por esses extras.
Sendo assim, vamo ao que interessa!
Kogarashi Monjirou: O Prenúncio do Inverno
Como comentei, o protagonista que nomeia a obra é Kogarashi Monjirou, um homem de poucas palavras, que anda sempre com um palito na boca. Entre os outros andarilhos, Kogarashi é respeitado e temido, conhecido pelo assovio que passa pelo seu lábio e o palito. O som é como o último vento de outono, que anuncia que o frio inverno está chegando.
Sendo assim, Kogarashi é um espadachim solitário, que vive à espera de sua morte. Ele se guia pelos seus princípios e pela conduta dos andarilhos honestos, evitando sacar sua espada desnecessariamente ou se envolver com moças de família honradas.
Na verdade, lendo o mangá me lembrei muito de Kubidai, o bushi solitário e cheio de honra do mangá O Novo Preço da Desonra. Claro, eles são tão semelhantes quanto diferentes, mas consegui fazer uma ou outra relação entre os protagonistas e as histórias.
História
Então, em Kogarashi Monjirou: O Prenúncio do Inverno, temos quatro capítulos — relativamente longos — mostrando a jornada desse andarilho.
No primeiro, Kogarashi está numa ilha que abriga exilados, onde eles praticamente morrem de fome ou são executados por tentarem escapar. Assim, depois de perder as únicas coisas que faziam sentido para Kogarashi naquela ilha, ele decide fugir com outros exilados.
Já na segunda história, Kogarashi repousa em uma hospedaria depois de se lesionar ao socorrer uma mulher. Até que, numa noite, o lugar sofre um ataque de vândalos, ladrões e estupradores e Kogarashi se vê obrigado a proteger o lugar, mesmo ferido. No entanto, em meio a tanto sangue e violência, o andarilho percebe até onde as pessoas podem chegar por seu egoísmo.
Na terceira história, Kogarashi ajuda uma moça a chegar em casa para o festival do Dia do Macaco e acaba passando a noite lá. Assim, descobre que a pequena cidade pode estar correndo perigo, com o anúncio de uma promessa de vingança. Porém, mais uma vez vemos o pior lado das pessoas aflorando, na busca pelos seus interesses pessoais.
Por fim, a quarta história mostra um pouco mais do passado e dos propósitos do protagonista. Com ela descobrimos a origem de Kogarashi, assim como o seu desejo pela morte. Então, socorrendo uma mulher violentada, ele dá de cara com seu passado, ganhando a oportunidade de honrar e deixar para trás fantasmas antigos.
O pior da natureza humana
Sem rodeios, essa obra mostra tudo de pior que as pessoas podem fazer. Tem vingança, traição, violência doméstica, violência sexual, suicídio, ganância, muitos assassinatos e por aí vai. Acredito que seja um tema relativamente comum e condizente com gênero jidaigeki, que mostra histórias de época.
Inclusive, um adendo pra valorizar a preocupação da Pipoca & Nanquim, tem aviso de gatilho de violência sexual no mangá. Parabéns P&Q, pois desse aviso em diante é só pra trás, então achei legal colocar uma nota de gatilho.
De qualquer forma, no meio desse mundo desolado, nosso protagonista é o herói. Não no sentido de ser bonzinho, ou salvador de todos, mas que luta para defender os justos, as mulheres e seus princípios. Se ele puder poupar sangue vai poupar, se tiver que matar ele vai matar e vida que segue.
Além disso, achei o Kogarashi muito humano. Ele é severo, rígido e, à sua maneira, certinho, mas carrega seus traumas e suas dores.
Pontos positivos
Agora, vou rapidamente falar o que achei positivo e negativo em Kogarashi Monjirou: O Prenúncio do Inverno.
Primeiro, gostei da forma com que ele é narrado. Por ser a adaptação de um romance, muitas partes são realmente ditas por um narrador, como se fosse um livro. Gostei disso, pois muitas coisas ganham explicação sem ser aquela coisa estranha do personagem fazendo um monólogo só pra situar o leitor naquele contexto.
Também gostei da carga histórica que ele carrega, pois além de se passar da década de 1830, traz muitas informações sobre esse período. Ou seja, não é apenas ambientado nesse tempo, traz também conteúdo histórico, que agrega muito pra quem quer conhecer o Japão pra além da sua cultura pop.
Além disso, gosto do fato das histórias terminarem de forma pessimista. Não tem final feliz aqui, as coisas não se resolvem na melhor forma possível e no fim fica aquele gosto de “meu deus, o mundo é uma merda mesmo”. Não sou inimiga de finais felizes, mas os finais tristes também merecem ser valorizados.
Pontos negativos
Agora, trago também alguns pontos que me incomodaram na leitura. Em relação ao traço, algumas vezes tive dificuldade de entender o que estava acontecendo, principalmente nas cenas de luta.
Enfatizo que isso é uma opinião minha e apenas aviso pois sei que isso pode incomodar outras pessoas também. Não é um defeito, apenas uma característica que, pessoalmente, não me agrada tanto. Apesar disso, o traço é muito bonito, voltado realmente para o público adulto.
Mais ou menos na mesma linha, acho que as mulheres poderiam ter sido desenhadas de outra forma, especialmente nas cenas de estupro (sim, fica o aviso, esse mangá tem MUITAS cenas assim). É muito complicado retratar uma cena dessa violência extrema e sexualizar a mulher, focar no corpo dela, não em como aquilo é um crime hediondo e irreparável.
Falei isso em outros reviews e reforço nesse. Eu entendo o contexto em que essa obra foi feita, eu sei por quem (homem conservador) e quando (época conservadora) foi desenhada. Sei que as discussões que temos hoje nem passariam na cabeça dessas pessoas. Porém, é uma discussão que temos que ter hoje, assim como precisamos ler esses conteúdos sabendo seu contexto e seus problemas.
Dito isso, também acho que todas as mulheres do mangá são um ctrl c ctrl v uma da outra, acho que Goseki poderia ter dado uma variada nos estilos.
Por fim, senti falta de ver Kogarashi passando por umas dificuldades em luta. Sim, ele é muito bom etc, mas não invencível. Um soco, uma tropeçada ou uma facadinha podia ter levado, né.
Conclusão
Finalmente, o veredito. Como fã de ver desesperança, desgraça e sangue escorrendo, gostei do mangá. No entanto, minha nota é pelos pontos que comentei acima. Então, vai de você julgar se o que eu falei faz sentido pra você, se concorda discorda, enfim. Leia e tenha seus próprios julgamentos, depois pode vir aqui contar pra gente.
De maneira geral, eu gosto das histórias de jidaigeki, justamente por nos tirarem da bolha da cultura pop do Japão. O país tem muito mais do que garotas kawaii e protagonistas de shounen. Tem uma carga histórica e cultural gigante que nós, como otakus, também conseguimos ter acesso por meio dos mangás.
Então, ficou interessado? Quer conhecer um andarilho misterioso e charmoso que faz picadinho de gente mal caráter? Então pega sua katana e vem conhecer Kogarashi Monjirou: O Prenúncio do Inverno.