Na noite desta última quinta-feira, o histórico Teatro Municipal do Rio de Janeiro esteve lotado de gente para assistir a uma das maiores pianistas da atualidade. Com mais de vinte anos de carreira nas costas, Hiromi Uehara retornou à capital cultural do país para tocar principalmente o repertório de “Spectrum”, álbum de 2019.
As luzes apagadas e os devidos realizadores do evento anunciados, entre eles a Japan House, Hiromi Uehara apareceu prontamente num vestido laranja e serelepe saltou ao nível do seu piano Yamaha. O que se seguiu durante a próxima hora não poderia ser descrito com nada menos do que espetacular.
Kaleidoscope foi a música que abriu o concerto. A peça, que também abre o disco Spectrum, cai muito bem como abertura, pois apresenta de diferentes modos a artista que é a Hiromi, tal qual o caleidoscópio referido no título. Porque se é verdade que Hiromi é bastante conhecida como uma pianista de jazz e também é verdade que o jazz é uma presença esmagadoramente forte no seu estilo, impera nela sobretudo a vontade de experimentar e de escapar às definições convencionais.
E como isso é expresso tanto em Kaleidoscope como em suas demais músicas? Com ritmos quebradiços, melodias e harmonias sobrepostas, arpejos subindo e descendo como o arco de uma senóide, ou para usar uma analogia menos pedante, como as voltas de uma montanha russa. E falar numa montanha russa de emoções não é nada indevido, pois cada acorde que quebra sua sequência e te joga de volta num loop melódico é tocado com tamanha força que muito se assemelha ao susto do despencar de uma montanha russa. A apresentação, afinal, proporciona uma experiência que é tudo menos passiva.
Em Yellow Wurlitzer Blues é possível vislumbrar um lado meigamente travesso da Hiromi. Como implica o título, temos uma composição bastante animada, convidativa até, pois o gingado da música fazia mover cabeças, dedos e pernas ao ritmo do blues. Ainda falando em gingado, quem assiste a uma apresentação de Hiromi Uehara testemunha uma artista completamente envolvida com sua arte. Seu corpo também atua com as mãos às teclas.
O ritmo do blues envolve a pianista com gestos, sorrisos travessos, quando não até gemidos; e o furor do momento por vezes a prende à melodia, sustentando ao máximo possível. Esse último detalhe surpreende, porque manter uma sequência harmônica por tanto tempo pode parecer monótono, a princípio. Mas é aí que músicos costumam se dividir entre os adeptos do virtuosismo e os adepto do feeling. Hiromi, dando grande exemplo do último, sustentava as notas com tamanha paixão que ao final os aplausos eram mais que certos.
Com uma plateia plenamente animada e encantada com o talento e a forte presença de palco da pianista, Hiromi tirou um tempinho para umas palavrinhas para os presentes. Primeiro com o inglês e depois, com o auxílio de uma folha, num português surpreendentemente bem pronunciado, Hiromi expressou sua alegria por estar de volta ao Rio de Janeiro. Em sentimento compartilhável com todos nós, a pianista mostrou-se aliviada em poder se apresentar ao vivo após a passagem de anos tão difíceis e restritivos para todos nós que os vivenciaram.
Foi nesse sentimento de gratidão, a despeito de uma demonstração profundamente constrangedora de desrespeito à artista por parte do público que começou um princípio de confusão entre si, que Hiromi Uehara iniciou sua próxima canção, Place to Be. A composição de 2009 exalava esse sentimento caloroso de quem se sente grata por ter um lugar onde se possa estar. Onde uma pessoa pode ser alguém.
Gratidões externadas, Hiromi voltou à sua habitual apresentação com composições que se assemelhavam à sua abertura. Valem aqui a menção de duas semelhanças no estilo da pianista, a fim de comparação, para que o leitor ou a leitora possam melhor visualizar o estilo de Hiromi Uehara. Aos fãs de Kingdom Hearts, a intensidade rítmica de seu piano a muito lembram as trilhas de ação em The World That Never Was, tocadas principalmente em piano. E aos fãs de j-rock, é impossível não traçar um paralelo com o músico Yoshiki do X Japan, principalmente no trato por vezes violento que Hiromi se expressa ao piano, dependendo da intensidade do momento.
Na última música antes de sua conclusão, o Teatro foi tomada por um forte breu, com apenas três holofotes destacando a artista. Ao melhor estilo “menos é mais”, uma melodia mais leve feito uma pluma evidenciou não só a versatilidade de Hiromi Uehara, que transita entre o melódico e o virtuoso com plena naturalidade, como denunciou a imensidão de ruídos que nos rodeiam. A culpa não poderia ser do público, evidentemente.
Nada mais natural umas tosses ali ou um ajeito no assento aqui. O que impressiona aqui é o fato desses gestos tão naturais terem se assemelhado a explosões de granadas diante de tamanha leveza tocadas pelas mãos de Hiromi. Todos os parabéns aí vão para o trabalho de iluminação, porque o enfoque visual estrito à artista ajudava e muito a redirecionar nossa atenção para aquilo que importava.
A “Rapisódia em Vários Tons de Azul” foi o grand finale do show de Hiromi Uehara. Aqui palavras faltam para explicar a magnitude do que foi apresentado. A composição de mais de vinte minutos foi tocada com a mesma naturalidade com que se inspira e expira os pulmões para respirar.
É simplesmente inacreditável testemunhar tamanha proeza com um instrumento ao vivo, tal qual é a destreza que Hiromi demonstra seguidas vezes em suas notas, que deslizam suaves como seda aos ouvidos. E em Rapsody in Many Shades of Blue entendemos a fama que Hiromi Uehara conquistou como uma artista que experimenta tantos estilos de uma vez, alcançando a proeza de mesclar com tamanha naturalidade e imediatamente um após o outro, tanto Bach como John Coltrane. A conclusão da peça deixou evidente a qualquer um o final épico de um show e os aplausos de pé foram inevitáveis.
Tão inevitável quanto os aplausos calorosos foram os pedidos de bis, que foram prontamente atendidos. Chamando as palmas do público para acompanhá-la em sua última música do dia, Hiromi aceitou contente e chamou à cena as palmas tímidas de pessoas aqui e ali que não resistiram em lhe acompanhar, mesmo sob fortes olhares de reprovação do entorno. A timidez deu lugar ao furor generalizado, finalizando o concerto de maneira plenamente festiva.
Hiromi Uehara já demonstrou que não gosta de ser definida de um jeito x ou y, pois não apetece à pianista, a ideia de se limitar a um estilo ou jeito de tocar. Justo. É evidente que o jazz não a define. Compõe, mas não define. Porém, uma palavra define a artista de forma clara, cristalina e inegável sem a limitar em nada. Hiromi é plenamente dionisíaca.
A palavra já foi usada com mais frequência, principalmente quando Nietzsche já esteve mais em moda. Mas fato é que tal qual o deus grego das festas, do furor e do vinho, Hiromi Uehara é uma artista que intoxica e se deixa intoxicar pela sua melodia, como quem cai de cabeça no mandamento de Baudelaire: embebedar-se de álcool ou de poesia ou, no caso de Hiromi, de música. Sua disposição sem fim em experimentar de tudo um pouco que a música tem a oferecer casa com o caráter atribuído a Dionísio de ser aquele quem traz o furor, a excitação e a alegria onde quer que pise.
A esta definição Hiromi Uehara não escapa. Ela não só é uma das melhores pianista vivas, como é sem dúvida uma das artista mais dionisíacas de nosso tempo.
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