Dororo foi uma ótima jornada do herói. Assisti-lo ao longo de 24 episódios, com ritmos ora intensos ora acalmados, trouxe um mix de muitos sentimentos.

Alguns traziam ternura, outros sem dúvida nos machucaram, houve até mesmo momentos de risadas com as travessuras de um yokai que trocavam as palavras de todo mundo. Acima de tudo, entretanto, Dororo possui um forte sentimento trágico, de tempos onde a vida era incerta e a morte, cotidiana.

TIRANDO O GLAMOUR DA GUERRA

Os samurais são O ícone que fazem a fama do Japão para o mundo. Não vou mentir, fascina; a criança que há em mim vibrou assistindo Rurounin Kenshin, já brincou de espadinha (com bainha, pra imitar o battoujutsu) e tudo o mais. Mas chega uma hora que é preciso saber ser criança sem ser irresponsável, e o que Osamu Tezuka mostrou em Dororo, seja na versão que for, é que o período de ouro dos samurais, o Sengoku Jidai, legou nomes famosos para a história e para a imagem do Japão, mas também legou um dos períodos de maior sofrimento para todo o resto que não fosse guerreiro: mulheres, crianças, idosos, os fracos e os doentes.

Dororo é cheio de momentos que mostram os verdadeiros espólios da guerra, num momento da história onde o poder está fragmentado e a norma vira a sobrevivência predatória do mais forte. Ao mudar a lente do campo de batalha para os vilarejos empobrecidos e lutando para sobreviver, Dororo tira o glamour típico da era dos grandes generais samurais. Essa atitude não é nem um pouco gratuita; para entendê-la, faz-se necessário uma breve observação sobre a geração de Osamu Tezuka e seu horror da guerra.

TEZUKA, MIYAZAKI E A GERAÇÃO JAPONESA DO PÓS-GUERRA

Em 2010, o historiador Yuki Tanaka, da Universidade de Hiroshima, escreveu um artigo sobre Osamu Tezuka chamado “Guerra e Paz na arte de Tezuka Osamu: O humanismo de seu mangá épico”. Nessas breves 16 páginas, temos o suficiente para entender os temas que envolvem as obras de Osamu Tezuka e o plano de fundo que o inspira a compor tantas histórias depois da Segunda Guerra Mundial.

Sem dúvida, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki foram acontecimentos macabros e aterrorizantes por si só, mas o terror já datava de meses. De novembro de 1944 até agosto de 1945, o fatídico mês dos ataques nucleares, os EUA já haviam detonado cerca de 170 mil toneladas de bombas normais e incendiárias. As segundas destruíam ainda mais do que as primeiras, se pararmos para lembrar que boa parte dos vilarejos têm casas de madeira. Hayao Miyazaki possui uma famosa memória de infância fugindo com a família no meio das chamas deixadas pelas bombas incendiárias, que lhe instaura o horror à guerra, tema recorrente de boa parte das produções do Studio Ghibli. Com Tezuka o episódio foi ainda mais dramático, tendo testemunhado um bombardeio incendiário numa torre de vigia em Osaka no dia anterior à bomba de Hiroshima; o episódio traumático rendeu a produção do mangá Kami no Toride (A Fortaleza de Papel), de teor autobiográfico.

Quando assistimos Dororo tendo em mente esse desprezo do autor pela guerra, todo episódio de barbárie cometida seja por samurais, como é o caso do destino trágico de Mio que desperta a fúria homicida em Hyakkimaru, seja por bandidos se aproveitando do idealismo dos pais de Dororo para seu próprio ganho, enfim, todos esses momentos onde aparece o pior do humano nos lembra, acima de tudo, o meio onde esse pior melhor floresce: no caos das guerras.

DILEMA DE DOSTOIEVSKI

No mesmo artigo, Yuki Tanaka observa as inspirações literárias de Tezuka: Karel ?apek (inventor da atual noção de “robô”) alimentou sua ficção científica. Outra forte inspiração era Fiodor Dostoievski, marca mundial da literatura russa. E Dororo apresenta um dilema dostoievskiano retirado diretamente dos Irmãos Karamazov. Vejamos esse famoso diálogo de Ivan e seu irmão Aliocha:

“Responde-me francamente. Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, uma criança, e fundar sobre suas lágrimas a felicidade futura. Você aceitaria, nessas condições, edificar semelhante felicidade? (…) Podes admitir que os homens consentiriam ao preço do sangue de um pequeno mártir?”

Dostoievski já foi criticado por ter feito situações-limite de dilemas morais, de situações tão extremas que chegam a ser irreais. Mas há gente que percebe que esses exageros servem para iluminar o fato de que a vida é feita desses dilemas, ainda que em menor escala, mas nunca deixam de existir. Osamu Tezuka também parece ter percebido bem isso, pois Dororo começa e se constrói maravilhosamente em cima desse dilema por todo o anime. A terra de Daigo Kegmitsu, um senhor feudal, está devastada pela fome e pela peste; seu último recurso é fazer um pacto com 12 demônios no Salão do Inferno, que em troca “daquilo que ele mais ama” irá dar a ele a paz e a prosperidade que deseja. É quando nasce Hyakkimaru que os demônios vêm cobrar o seu preço, para e enorme tristeza de sua mãe, que passa a rezar para uma bodhisattva kannon, símbolo budista de maternidade entre outras virtudes, para tentar expiar o peso na sua consciência, o peso de ter escolhido ser “esposa de um senhor, ao invés de mãe dos filhos de um senhor”.

E “os homens consentiram ao preço do sangue de um pequeno mártir”? Nesse ponto vemos como é delicada a situação, pois as pessoas que vivem naquele domínio passaram a viver em prosperidade, como é a responsabilidade de todo bom governante. Daigo Kagemitsu sofre o dilema de escolher entre ser um senhor de terras e um pai, pois não consegue ver uma possibilidade de ser ambos no meio de tanta miséria.

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Dororo (Pôster Divulgação)

DRAMA FAMILIAR

As coisas parecem lineares como todo shounen: esse bebê completamente deformado sobrevive e é adotado quando achado num rio. Hyakkimaru, agora com nome, cresce e mata demônios (kishin) para poder recuperar seu corpo de volta. No caminho, encontra uma criança órfã chamada Dororo, que sobrevive de pequenos furtos (por isso o jogo de palavras, Dororo e dorobo = ladrão) e os dois embarcam numa jornada, recuperando um pouco do corpo de Hyakkimaru a cada demônio morto.Esse ritmo é perturbado quando Hyakkimaru reencontra sua família pela primeira vez. Recuperar o próprio corpo significou a volta das doenças e da fome, fazendo com que seu pai fique determinado a mata-lo para cumprir o acordo com os demônios de uma vez por todas. Nesse cenário temos Tahomaru, segundo filho e irmão mais novo de Hyakkimaru. Tahomaru cresceu cercado de bens, boa educação e com dois amigos leais, Hyogo e Mutsu; mas havia sempre um vácuo que o distanciava de seus pais e esse vácuo sempre o perturbou desde criança. A necessidade de ganhar o reconhecimento de seu pai como um filho digno de ser seu herdeiro o vira tragicamente contra o seu irmão, pois Tahomaru também entende que é o dever de um governante governar para o bem de seu povo e com Hyakkimaru vivo, o povo da terra de Daigo estaria a mercê da fome e da peste.

É de uma genialidade trágica que o principal antagonista de Dororo seja sua própria família. Quem consegue ver as coisas pela perspectiva de todos, lamenta, num espírito semelhante ao de Tezuka, que tempos tão árduos e violentos tenham gerado toda essa situação em primeiro lugar. E quanto a Hyakkimaru? Um inocente que teve o seu corpo tomado sem ter culpa de nada. É justo que ele busque seu corpo de volta, mas é desejável que ele busque justiça até as últimas consequências? O anime também explora essa situação.

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Dororo (Pôster Divulgação)

BUSCAR JUSTIÇA SEM VIRAR UM DEMÔNIO

Biwamaru é um personagem que serve como mediador e conselheiro para Dororo e Hyakkimaru. Apesar de cego, esse antigo guerreiro, agora monge, também consegue enxergar pelos olhos da alma e assim consegue ser um forte apoio o Eustácio de Dororo (sério, ele é igualzinho ao Eustácio de Coragem o Cão Covarde).

Talvez o conselho mais importante que ele dá para a dupla é o cuidado que Hyakkimaru deve tomar com sua busca pelo seu corpo. Buscar justiça não pode tornar pretexto para destruir sua alma; cada humano que ele assassina, mesmo pelos motivos mais justificáveis como o massacre do orfanato de Mio, o aproxima de se tornar um demônio.

O peso de tirar uma vida humana, seja ela qual for, é uma lição de moral forte em Dororo, definindo a história do pai adotivo de Hyakkimaru, Jukai. Ele era um soldado como qualquer soldado de seu tempo, realizando as ordens de seu senhor, matando quem precisasse matar. Depois de tanto tempo executando os inimigos de seu senhor, Jukai tenta se expiar virando um especialista em próteses. Mesmo assim, isso não é o suficiente para que o rancor sumisse de seu primeiro filho adotivo, quando descobre que foi ele quem crucificou o seu pai. Jukai sente o peso da culpa a ponto de tentar se matar, quando descobre Hyakkimaru ainda bebê e encontra uma nova chance de fazer algo positivo com sua vida.

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Dororo (Imagem Divulgação)

INSPIRAÇÕES E LIÇÕES BUDISTAS EM DORORO

Dororo é uma das obras que nascem do desejo criativo de Osamu Tezuka em deixar algum aprendizado profundo desde cedo para as crianças, ainda que suas mensagens sejam muito relevantes para os adultos. Dororo, a criança, passa boa parte do anime como acompanhante, mas tem sua história bem desenvolvida e bem tocante. É de cortar o coração ver os esforços de sua mãe em mantê-la viva enquanto escolhe o caminho oposto de Mio: preservar a integridade de seu corpo, honrando-se à altura da honra que ela enxergava no valente marido, ainda que lhe custasse a vida.

Nem o tema da orfandade é gratuito, pois ele toca num assunto que está presente nas obras de Tezuka desde Astro Boy, quando foi lançado em 1951: os vários órfãos que os bombardeios deixaram no Japão do pós-guerra. Dororo também perde os pais em virtude das guerras civis que assolaram o Japão por mais de um século e o anime empenha em mostrar esta criança reconstruindo sua vida em meio a ruínas.

Mas há uma personagem importantíssima presente desde o primeiro episódio e responsável pelo clímax na luta final entre Hyakkimaru e Tahomaru; ela está sempre presente nas orações da mãe dos rapazes, sempre sem nome e sempre sem explicação, mas onipotente como veículo dos valores que o anime passa: a estátua da deusa Kannon, para quem a mãe de Dororo dirige suas preces desde o dia em que ela o perdeu.

Kannon é uma deidade popular no Japão, uma bosatsu (ou bodhisattva), que é diferente de um buda, pois apesar de ter alcançado a iluminação (o buda), escolheu permanecer no mundo para iluminar todos aqueles que puder. Seu culto data de muito tempo, entre os séculos I e II DC e foi uma das primeiras deidades a serem amplamente veneradas quando o budismo chegou no Japão, no século VI.

Como é de praxe no budismo, suas formas de culto e conduta são bastante plásticas, então Kannon já ganhou várias formas e versões. Só este dicionário online sobre budismo bastante informativo já listou dezenas. A que nos interesse aqui é uma forma mais moderna de Kannon relacionada às crianças que morrem ainda no ventre. Apesar de ser uma versão moderna, a data da lenda a qual ela remete engloba a época do anime: os séculos XIV e XV.

Notemos aqui três paralelos interessantes nessa lenda com os acontecimentos do anime:

  • Segundo esta, as crianças que morrem prematuras vão parar no rio de Sai no Kawara, rio onde fluem as almas para o purgatório. (assim que nasceu, Hyakkimaru foi deixado num rio pela parteira).
  • Apesar da alma de uma criança ser inocente, ela ainda não construiu bons karmas. Essas condições podem fazer com que a alma sinta-se ressentida pelo abandono e busque compensação. (o que tem muito haver com o forte desejo de Hyakkimaru em recuperar seu corpo, ainda que ele tenha que destruir uma vila inteira para isso, desconhecendo ou mesmo ignorando as consequências de seus atos).
  • Pela sua morte ter causado enorme tristeza aos seus pais, a alma da criança passa por uma provação onde demônios tentam impedir sua saída do limbo, quando são ajudadas pelo Jizô Bosatsu, um bosatsu que lembra um monge. (a situação que passa a alma da criança na lenda de Sai no Kawara lembra a luta de Hyakkimaru contra os demônios que querem o seu corpo e a ajuda de Biwamaru, o monge, no processo).

Nessa jornada de reconstruir seu corpo perdido e “construir bom karma”, Hyakkimaru é lembrado a não deixar sua fúria levar a melhor e roubar sua humanidade. O último episódio de Dororo fecha perfeitamente uma longa e triste tragédia que se resolve quando a deusa Kannon se manifesta na visão de Hyakkimaru instantes antes que ele acabasse matando o irmão, pois a misericórdia valia mais do que a perda de sua alma. A misericórdia logo vira redenção quando a mãe de Hyakkimaru dá o afeto que ela sempre negligenciou e Jukai aparece com uma última missão de vida: entregar a Dororo uma estátua de Kannon para lembra-lo de sua humanidade, que precede o seu corpo.

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UM ÉPICO SOBRE REDENÇÃO

Dororo é em essência um grande épico sobre redenção, no melhor estilo do que o budismo tem a ensinar. Temos espaço para redenção até para Daigo Kagemitsu, o homem que sacrificou o filho pela sua terra e acabou perdendo tanto esta quanto toda a família. Ele espera ser morto por vingança, mas Hyakkimaru encontrou o caminho da humanidade e se recusa a mata-lo, incentivando seu pai a seguir o mesmo caminho, que cai em lágrimas e verdade seja dita, foi um choro tão profundo quanto chocante, que capta o remorso de um homem que sabe que errou mesmo tentando fazer a coisa certa.

A nossa reação diante da injustiça que Hyakkimaru passa às vezes passa um desejo de que o herói se vingue daqueles que lhe fizeram mal. Mas Osamu Tezuka não construiu uma história de vingança, mas sim uma história que nos ensina o “caminho da humanidade”, que prefere a construção à destruição, que abjeta a violência e preza a paz, bem no espírito de um homem que testemunhou em primeira mão os horrores da guerra e que quer ensinar uma geração futura a ser uma geração melhor. Dororo é mais uma linda estrela nessa bela constelação construída por Tezuka.