Hoje vamos falar sobre uma história de amor, de lembranças e de corações partidos. Vamos falar sobre duas borboletas que voam eternamente lado a lado, mas nunca pousam na mesma flor. Vamos falar sobre Confins de um Sonho que, na sua sensibilidade e esperança, duramente nos lembra que nem sempre sonhos se realizam.
Numa parceria com a Pipoca & Nanquim, editora que tem um acervo de quadrinhos incrível, o Suco teve acesso ao mangá deste Review. A editora publicou a obra em fevereiro de 2023, então ela ainda está quentinha, recém-saída do forno. Além disso, a mangaká responsável pela história e pela arte é Yumi Sudo, também conhecida pelos títulos Nirai Kanai, Midnight Blue e tantos outros.
Enfim, agora que você já conheceu os responsáveis por nos entregarem essa obra fantástica, vamos falar sobre ela em si.
História
Bom, Confins de um Sonho conta a história de Kiyoko e Mitsu, duas mulheres que se conheceram na adolescência, período pós segunda guerra mundial. Agora, já com 85 anos as duas se reencontram para colocar a conversa em dia e um assunto delicado vem à tona.
E se, quando eram jovens, não precisassem ter escondido o amor entre elas? Ou se tivessem nascido em uma época em que o casamento entre duas mulheres não fosse um tabu? E talvez, se atualmente Mitsu tivesse voltado um pouco antes, antes da doença neurodegenerativa de Kiyoko estar tão avançada?
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Então, com essas reflexões, Mitsu se despede mais uma vez. Mas, depois desse encontro a mente de Kiyoko começa regredir ainda mais. Antes, ela já não reconhecia a bisneta, confundia as pessoas da família e esquecia de coisas importantes. Agora, seu transtorno neurodegenerativo faz com que Kiyoko volte para épocas anteriores, que fique presa nas memórias dos seus encontros e desencontros com Mitsu.
Assim começa a história de um amor atemporal, guardado para que fique vivo na memória até a última batida do coração.
Sensível e encantador
Primeiro de tudo, devo confessar que antes mesmo de terminar o primeiro capítulo (o mangá tem 10 capítulos) eu já estava chorando. Confins de um Sonho mostra a doença de Kiyoko e o amor entre elas de maneira incrivelmente sutil, característica que perdura a obra inteira.
Além disso, a delicadeza que a autora teve em construir a relação e o sentimento delas é digno de reconhecimento. A paixão entre elas não é fervorosa, urgente e afoita. Pelo contrário, é um sentimento genuíno, daqueles que ficar ao lado da pessoa tomando um sorvete já é motivo de festa no coração. Não é como olhar um riacho barulhento de correnteza agitada, mas sim olhar a superfície imperturbável e estável de um lago profundo.
Portanto, a escolha de contar a história de trás para frente, começando no ano de 2018 e voltando gradativamente até 1948 encaixou perfeitamente no contexto. Assim, vamos conhecendo aos poucos a trajetória delas, seguindo o fio até sua ponta e tudo fazer sentido. Ainda, algumas coisas que lemos em algum capítulo inicial pode parecer meio fora de contexto, mas à medida que prosseguimos na história e voltamos no tempo, as peças se encaixam perfeitamente.
Altos e Baixos
Sendo sincera, Confins de um Sonho é uma obra linda, mas longe de ser uma história feliz. Creio que, no geral, há uma relutância em aceitar histórias que não tentam nos enganar com resoluções perfeitas e todas as expectativas sendo alcançadas. Não é incomum ouvir coisas como “é bom, mas é muito triste” ou semelhantes.
No entanto, a beleza da melancolia traz reflexões que dificilmente teríamos nas obras que seguem o padrão “tudo está bem, tudo fica melhor ainda, agora ficou meio ruim, mas agora ficou tudo perfeito”. A dor, a perda, os desencontros e as promessas quebradas são difíceis de aguentar, mas nos mostram partes escondidas de nós mesmos.
Afinal, é óbvio que todo mundo fica feliz ao saber que os planos deram certo, que o seu namorado vai te levar pra passear de helicóptero ou coisa do tipo. Mas agora, como você ficaria se descobrisse que o amor da sua vida vai casar e não há nada que você possa fazer a respeito? Ou, talvez, se você soubesse que pouco a pouco suas memórias estão sumindo? Que a única coisa que te liga com alguém importante são lembranças distantes e uma caixa escondida?
É fácil amar quando as coisas são perfeitas, quando a paixão brilha tanto que ofusca. Nas histórias felizes, você sabe qual vai ser o fim e se contenta com aquilo. Por outro lado, não é fácil quando a vida te dá uma rasteira atrás da outra, quando você se dedica de corpo e alma pra alguém mesmo sabendo que no fim do dia continuará sozinha.
É por isso que Kiyoko e Mitsu passam desde o dia em que se conheceram, e aí vemos a beleza do amor delas. Vemos um amor com raízes fortes que, mesmo com 85 anos e naquelas condições, o carinho e o cuidado ainda existem.
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Realista
Outro ponto que eu não podia deixar de abordar é o realismo do relacionamento entre duas mulheres. Mais ainda, numa época tão conservadora em um país ainda mais conservador que é o Japão.
Por exemplo, alguns diálogos aqueceram meu coração, como a tradicional reflexão “se eu fosse homem, a gente poderia ficar juntas”. No entanto, a resposta pra isso foi que “não, eu te conheci porque você é mulher. Eu me apaixonei por você sendo mulher”. Ou seja, nada na condição delas deveria mudar. Nenhum casal hétero pensa “poxa, se a gente fosse do mesmo sexo poderíamos ficar juntos”, então tampouco nós temos que pensar assim.
Enfim, Confins de um Sonho mostra duas mulheres realistas, com sentimentos realistas. A autora acertou em cheio ao representar essa relação, com suas inseguranças, esperanças e desafios.
Além disso, me agradou ela não ter focado no preconceito e na discriminação que a comunidade LGBT passa. Fica claro no mangá que eles existem, que acabam influenciando as decisões delas, mas esse não é o foco da obra, assim como não é o foco na nossa vida.
De qualquer forma, como nós não temos um dia de paz, o último capítulo foi uma facada no coração. É perfeito, encerra sem pontos soltos e novamente traz a sensibilidade e cuidado da autora. Porém, novamente, não é o padrão de final feliz (apesar de eu ter achado lindo a forma com que ele terminou).
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A Publicação
Agora, preciso falar sobre a publicação em si, o mangá físico, e começo dando os parabéns pra Pipoca & Nanquim.
A qualidade da folha é maravilhosa, é grossa e suave (não deixa a ponta dos dedos sujas, como certas editoras por aí), e com certeza vai durar por um bom tempo. Além disso, a escolha da arte da capa, as cores da sobrecapa, o detalhe perspicaz e cruel de Mitsu e Kiyoko estarem nas orelhas da sobrecapa, mas olhando pra lados opostos… Tudo foi muito bem trabalhado.
É uma publicação impecável que juntamente com seu tamanho (300 páginas) vale cada centavo. Com certeza guardarei com muito carinho.
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Considerações finais
Finalmente, Confins de um Sonho me conquistou assim que chegou pelo correio. Me encantei pela capa, pela escolha de cores, pela sinopse e pela história. Por ser um girls love sincero e cuidadoso, seria capaz de ler uma vez atrás da outra. Inclusive, tenho certeza que a cada nova leitura poderei achar mais pistas e detalhes milimetricamente calculados pela autora.
Enfim, esta é uma obra que não fez esforço para entrar na minha lista de favoritos, junto com Your Name e A Viagem de Chihiro. Eu recomendo a leitura totalmente e espero que esses Confins de um Sonho cheguem no seu coração com tanta sensibilidade quanto chegou no meu. Boa leitura!
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