Conversamos com Barbara Gutierrez, profissional experiente da cobertura de eventos sobre games. Nesse bate-papo ela contou sobre sua infância, as dificuldades de mercado e sua constante luta pelas causas sociais.
Se queremos realmente crescer como mercado precisamos trazer mais e mais diversidade, mais e mais inclusão porque infelizmente ainda temos esse conceito errado de que games são para meninos ou homens. É uma coisa super anos 90.
Quem é Barbara Gutierrez?
A Barbara Gutierrez é uma mina que se importa muito em tentar fazer a diferença. Eu trabalho com games a mais de sete anos, mas apesar da minha paixão por games ser muito forte e todo o meu lado profissional ser algo muito importante para mim, eu tenho me redescoberto como uma pessoa que também pode viver a vida além disso, sabe?
Eu foco muito em tentar fazer a diferença, seja para as pessoas próximas a mim, seja para as pessoas que eu talvez nem conheça direito. Ou então fazer a diferença para o mundo mesmo. Acho que esse é o principal lado que eu “tô” recentemente.
Como começou a sua relação com os games?
Desde quando eu era pequena o meu pai levava jogo lá para casa. Seja Tamagochi, que é bichinho virtual, ou aqueles jogos que era super simplesinhos, da cobrinha, etc. dentro de um dispositivo bem pequenininho que cabia na palma da mão. Não era o Game Boy, era um bem mais barato.
Quando eu tinha uns sete ou oito anos ele abriu um fliperama em Atibaia, que é onde minha família mora. Eu lembro que antes e depois da escola eu ficava o tempo todo jogando enquanto ele estava lá. Então a minha relação com games sempre existiu, desde pequena. Meu amor aos games começou daí.
No fliperama tinha algum game que jogava muito? Que marcou bastante?
Sim, vários. Vários né, mas assim, de todos eles eu posso falar com certeza a franquia inteira de Metal Slug. Tanto que assim, os sons da minha live são de Metal Slug. Nem sei se isso é permitido, provavelmente não, mas beleza, é muito da minha infância. Alguém me segue, alguém faz alguma raid, donation… tudo é som do jogo, então ele me definiu bastante. Foi lá que tudo começou.
O meu primeiro console foi um PlayStation 2, depois de pedir muito. Apesar do meu pai abrir o fliperama, na época em que eu era adolescente e queria ir na lan house, meus pais não deixavam. Minha mãe já não gostava que eu fosse no fliperama, mesmo sendo do meu pai, porque ela falava que não era ambiente de mocinha de família. Entendia a preocupação deles, mas é muito doido de ver como tudo começou ali, sabe?
Eu jogava na casa das minhas amigas, ia na casa da Mariana ou da Bruna. A Bruna tinha o Mega Drive e eu jogava o Sonic, a Mariana tinha o Super Nintendo e eu jogava o Mario Bros. Ia na casa da Satiê, outra amiga minha que tinha todos os consoles possíveis. Ela tinha o Game Cube e jogava muito com ela. Foi nessa época que comecei a odiar Super Smash Bros porque ela mandava muito bem.
A minha vida toda foi permeada por games, eu só realmente não entedia que eu poderia trabalhar com isso tão cedo, pelo menos.
Com que idade começou a trabalhar e qual foi a porta de entrada para a indústria?
Quando eu tinha uns 15 anos, 16 ou 17, por aí, o meu namoradinho da época trabalhava numa empresa chamada Tambor que cuidava do site Herói, que antes tinha sido uma revista super consagrada, e eles estavam precisando de conteúdo sobre cultura otaku e eu adorava e comecei a escrever lá os resumos dos mangás de Bleach.
Eu falei “olha, então, eu faço isso daqui de graça”, e foi muito engraçado porque eu fiz meio que um review de como foi o Anime Friends ou Anime Dreams, não lembro, da época e esse review acabou indo para o MSN. Só que eu era menor de idade, então trocaram o meu nome e colocaram o de outra pessoa. É muito engraçado porque eu fazia isso com menos de 18 anos, mas ainda sim não entendia que poderia transformar aquilo mesmo em trabalho.
Então fui para a área de letras, tipo nada a ver… não terminei. Para o desgosto de minha mãe larguei no quarto ano e ela “você vai largar USP filha”, foi difícil. Bom, antes de falar sobre eu largar a faculdade vou falar como aconteceu.
Eu gostava muito de DOTA, jogava o tempo todo, ficava na comunidade e tudo mais, até que eu conheci um cara que trabalhava no Kotaku, nome dele era Marcos. Um dia ele chegou para mim e falou “Se liga, mano. Vamos criar um blog de DOTA aqui, blog de comunidade.” E eu falei “simbora”. Juntou eu, Marcos e Yvis e abrimos um blog chamado Last Hit e foi assim que tudo começou. É um blog de comunidade que eu fazia com eles e que foi abrindo caminhos para mim.
O Marcos acabou sendo contratado pelo IGN e não teve tempo para se dedicar ao blog, e deu para mim e para o Yvis, aí continuamos. Depois o Yvis tava cansadão, aí continuei e fui indo em eventos, fazendo boas relações, até que me chamaram oficialmente para um trabalho de assistente de produção de conteúdo na X5.
Na época eu fazia de tudo por pouco, é o famoso “bem pouco para fazer de tudo”. Fiz os roteiros da Nyvi Estephan, foi lá que comecei a trabalhar e onde ela começou a trabalhar. Fazia os roteiros, minutagem de vídeo, roteiro para propaganda da Ponto Frio, de tudo mesmo.
Fiquei lá por três meses, mas foram super intensos e eu percebi que realmente amava fazer conteúdo, principalmente na parte de cobertura de eventos de eSports e games. E aí eu comecei a enviar email para todo mundo, todas as redações aqui do Brasil me apresentando, falando sobre o que eu fazia, mandando meu portfólio da X5 e foi quando o Omelete me chamou para conversar, e na época eu ajudei a abrir a sessão de esportes eletrônicos lá do Omelete.
Qual foi a maior dificuldade para entrar na indústria?
A maior dificuldade foi com meus pais, porque não importa o quanto você fale que não se preocupa, que não liga para a família, você sempre vai querer a aprovação deles. Eu sempre fui uma pessoa muito competitiva, então eu achava que sempre tinha que ser a melhor.
Foi sempre difícil para mim ser a menina que foi criada no interior, ir para São Paulo sozinha para fazer faculdade e largar a USP no quarto ano, meus pais queriam me matar. Lá no interior é assim, se você não faz uma faculdade pública tipo UNICAMP, UNESP ou USP você é um perdedor. As pessoas veem desse jeito, sabe?
Não é verdade, mas até você realmente provar isso vai um bom tempo, e demorou muito até que meus pais entendessem a minha escolha e me apoiassem. Eles começaram a entender isso quando eu era gestora de dezessete pessoas.
Tenho certeza que me provar para eles foi o mais difícil e acho que é o mais difícil para todas as pessoas que realmente querem se consolidar com alguma carreira direcionada a games ou esportes eletrônicos.
Qual o profissional da indústria que mais te marcou nessa sua trajetória?
Eu sinto que durante a minha trajetória só fui fazendo porque eu sentia que não tinha grandes inspirações. É o famoso “tava lá enquanto tudo ainda era mato.” Eu comecei a ter inspirações quando eu já tava consolidada.
Duas mulheres que posso dizer que são inspirações para mim são a Froskurinn, caster de League of Legends, e também a Soe, ex caster de DOTA que agora trabalha com Overwatch. Essas duas são mulheres incríveis. Admiro demais o trabalho delas.
Mas como falei, elas chegaram para mim um pouco depois. Eu já tava meio consolidada e aí comecei a ver e falei “nossa, como essas minas são foda.” A Soe nem tanto porque ela era da comunidade de DOTA desde quando comecei a escrever sobre, ela já tava lá só que eu não via ela necessariamente como “quero ser igual a ela”, eu a via como “se ela consegue eu também consigo. Aquela mina lá um dia pode ser eu também.” E isso foi muito importante.
Nós não temos o mesmo número de minas dentro do mercado com o mesmo destaque que os homens, mas tendo destaques e exemplos de inspiração lá já é suficiente para mostrar que ela pode estar fazendo algo que não seja a sua vibe, mas se outra mina conseguiu esse espaço um dia você pode também conseguir, independente do que queira fazer. Desde que se esforce e esteja no lugar certo, na hora certa.
Muito do que a gente tem hoje em dia é resultado do nosso esforço, obviamente, mas também é questão de acesso, sorte, etc.. Eu não acredito 100% na meritocracia, isso seria um discurso de exclusão da minha parte, porque entendo as dificuldades que as pessoas passam por N motivos.
Enfim, no aspecto de mulheres servindo como exemplo, eu acho que a Soe e a Froskurinn me inspiram demais. A Soe sempre teve um jeitão meio moleca muito bacana que acho que a gente precisa explorar, porque o tempo todo te falam para usar rosa, é bonitinho, é cor de menina e eu só tô me permitindo fazer isso agora, porque antes eu tinha horror a rosa e coisas do tipo porque eu queria ir contra esse padrão super desnecessário que querem colocar na gente.
A Froskurinn é um exemplo LGBTQIA+ que acho muito importante, principalmente para as mulheres, porque já é difícil termos representatividade feminina e ter representatividade feminina LGBTQIA+ é mais tenso ainda.
Só de ver essas minas representando, no destaque, é muito importante para mim e é o que quero fazer para outras meninas e pessoas LGBTQIA+, além de querer lutar por outras ditas minorias, porque na real a gente não é minoria. A palavra minoria está muito mais relacionada aos nossos direitos do que a nossa quantidade.
Você é uma pessoa que luta muito pelas causas sociais no conteúdo que produz e nas redes sociais. Como você se sente sendo uma das protagonistas nessa luta?
Rapaz, não tenho nem blusinha para isso.
Eu acho que é muito menos sobre o meu protagonismo e mais sobre o empoderamento de outras pessoas que podem se sentir impactadas com esse tipo de discurso. Acho que é muito importante que a gente traga um cenário incluso dentro do mercado de games e esportes eletrônicos.
Pô, tem professor de faculdade falando e atestando. A inclusão e diversidade de uma equipe acaba atuando diretamente na criatividade daquele mesmo núcleo. Se queremos realmente crescer como mercado, precisamos trazer mais e mais diversidade, mais e mais inclusão porque infelizmente ainda temos esse conceito errado de que games são para meninos ou homens, que é uma coisa super anos 90.
Acho que empoderar pessoas que se sentem muitas vezes rejeitadas ou que não pertencem ao meio de games e mostrar que sim, você pertence sim. Olha só, eu tô aqui. Se eu tô aqui sobre isso, porque você não pode estar?
Precisamos adicionar comunidade LGBTQIA+, mulheres e mesmo movimentos sociais dos quais eu não faço parte, mas que também luto para ter um maior destaque no âmbito social. Como pessoas que não são brancas, pessoas com deficiência também.
É isso o que quero, que as pessoas assistam os jogos eletrônicos e não vejam só homens brancos, héteros e cis. Tem muito mais do que só isso.
Tem uma frase da G. Willow Willson que diz “A dor tem que ir para algum lugar”. Você acredita nessa frase? Você luta para que elas tenham espaço então você acha, que em menor escala, você também sofre?
Puts, é foda. Quando você luta pela diversidade e inclusão, vai contra a corrente de um sistema inteiro sócio-político e econômico que traz exclusão. A real é essa, principalmente no capitalismo, não querendo transformar tudo que eu diga, mas de certa forma tudo é política.
Pro capitalismo girar você precisa de uma pessoa ganhando em cima da outra, a exclusão e falta de diversidade acaba sendo corroborada por causa disso. Por muitas vezes eu também senti isso, porque por mais que eu tenha diversos privilégios, eu sou uma mulher, bi/pansexual, principalmente dentro de um contexto super machista que é o mercado de games, então já passei por poucas e boas só por ser quem eu sou. Só por ser uma mulher, só por ser LGBTQIA+.
Quando você luta por algo, você se posiciona e com isso você acaba perdendo algumas coisas, porque é cômodo para o sistema que você permaneça sem se posicionar, porque sem o posicionamento não existe a mudança. É por isso que é muito fácil você ser uma figura pública e não se posicionar, porque dane-se, você não vai se posicionar, não vai ter um lado político, não vai perder nenhum contrato e o status quo permanece o mesmo.
Eu perdi um emprego por desafiar esse status quo. Tudo o que aconteceu na Loading em 2020, no final. A gente queria fazer matérias sobre machismo, sobre racismo, matérias com cunho social importante e que não é interessante para muitas pessoas. Por quê? Aí vem aquele negócio: empresa nenhuma quer desafiar a sociedade em si, ela só quer lucrar.
Por isso é tão difícil quando a gente fala sobre fazer conteúdo, fazer conteúdo é caro. Quem tá pagando por esse conteúdo? São empresas. Mas as empresas tem um interesse econômico, esse interesse vai para onde?
Já passei por muitas situações enquanto jornalista fazendo conteúdo, enquanto mulher porque tem o assédio. Já passei por diversas situações sendo mina nos games, em partida casual, só por conta do meu gênero. Escutei besteira tipo “você gosta de mulher, que desperdício.”
Isso existe na sociedade em geral e o esporte eletrônico é um microcosmo da sociedade, portanto tem o lado bom e o lado ruim. O machismo e o preconceito também são herdados, por assim dizer.
Por isso acho que é tão importante você, enquanto figura pública, influenciador, pro-player, etc. se posicionar. É muito confortável você continuar sem se posicionar porque as coisas vão permanecer como estão e você não precisa se preocupar, porque você tá muito confortável assim. Você não vai dar um passeio pela Paulista e levar uma “lampadada” na cara. Não vai receber menos só por conta do seu gênero, não vai ser morto pela polícia por conta da sua cor.
Você teve uma passagem pela Loading, como disse, e também retuítou um texto sobre liberdade editorial. Como você enxerga esse problema hoje no Brasil?
É muito complicado, porque não posso falar que todo veículo de mídia tem o seu problema em questão de liberdade editorial, porque estaria mentindo. Só que também estaria mentindo se dissesse que todo veículo de mídia é 100% livre. Existem claros exemplos que isso é mentira. Como uma pessoa que já trabalhou em diversos lugares, editorialmente falando, te dou a certeza de que em vários dele eu tive liberdade e em alguns eu não tive.
O que aconteceu na Loading é que não ficou claro qual seria a questão desde o início. Não nos falaram isso e basicamente formaram uma equipe inteira formada por jornalistas investigativos e falaram “faz aí o Caldeirão do Huck versão eSports.”
Tudo tem que ser conversado. Por quê? Porque existem pessoas, e eu sou uma delas, que precisam sentir que estão fazendo a diferença. Se no trabalho delas disserem que são financiadas por um sheik e por conta disso não falamos sobre política, vocês podem falar sobre isso e aquilo. “Podemos falar sobre feminismo?” Sim. “Podemos falar sobre X, Y?” Sim, não. Isso se chama direcionamento editorial.
O certo é que a equipe toda antes de entrar, desde o estagiário até o editor-chefe, deve estar de acordo com aquilo desde o dia 0. Existem veículos de mídia que tem liberdade editorial, e não falo isso só no âmbito de jogos, eSports, falo isso no geral. Política, até mesmo. Existem diversos veículos que tem uma liberdade editorial, mas algumas vezes se você quiser ter a certeza, cheque os veículos livres. De imprensa livre, que vivem com o investimento da galera.
No final você precisa construir a sua base de imprensa confiável e ficar de olho, mas lembrando que quem é pago pelo público é ótimo. Isso significa que realmente o povo que tem o poder, porém numa situação assim, o público tem poder, vai ser tão dependente do público que a audiência vai falar mais alto. Tem que ter conteúdo que também fale sobre audiência.
Existem lugares e lugares, redações e redações, você precisa estar atento no lugar que vai entrar. O único caso que entrei desavisada foi a Loading. Nenhum lugar vai te deixar desavisado do que você vai fazer ou não. Você vai analisar se aquilo vai de acordo com o seu perfil.
Eu, Barbara Gutierrez, não conseguiria entrar em um lugar no qual eu não conseguiria falar sobre machismo, racismo, LGBTQIA+fobia. Se eu não posso falar sobre essas coisas eu penso “Por que estou aqui? Vou conseguir deitar minha cabecinha na minha cama e ficar de boa? Não, não vou.” Então eu sei que não vou dar certo com esse lugar.
Algumas pessoas entendem os limites do que elas fazem dentro do horário de trabalho, mas vai ver o que elas fazem. As vezes elas fazem trabalhos bacanas de política nos seus perfis pessoais. Isso é muito importante. O necessário não é você se apaixonar por um CNPJ, é se apaixonar por um CPF, principalmente em questão de conteúdo.
Quais são os seus próximos passos dentro da indústria?
Recentemente fui anunciada como embaixadora Buscofem, então até o final do ano eu tô como embaixadora deles. Além disso eu estou como colunista do Terra toda quinta feira com o Pablo Miyazawa, para falarmos sobre os maiores bafões dos eSports e dos games, o que tem sido bastante bacana, e tenho mais dois projetos que não posso falar, mas que vem aí.
Para encerrar, depois de todos esses anos, quais trabalhos te dão mais orgulho de ter feito parte?
De reportagem, acho que a INTZ e da RED, que desmascarei o esquema de laranjas que eles fizeram, que a Riot tinha determinado que não pode e eles esconderam com o nome da namorada de um e do filho do outro. De vídeo, eu gosto da websérie de LGBTQIA+ no eSports que se chama “eSports de todas as cores” que fiz no Versus, e também um vídeo sobre o dia das mulheres que também fiz lá.
De apresentação tem várias coisas. Já participei do Red Bull Player One, já fui na e3 também. Acompanhei o lançamento do Nintendo Switch, fui em vários campeonatos importantes e muito marcantes.
Teve também o episódio do Metagaming que a gente fez e deu no que deu, mas é muito bom apesar de todos os pesares. O primeiro episódio foi eu, a Duda e a Dil que fizemos, uma equipe só de minas. Foi o início, apresentando nosso programa tá ligado? Ficou bem legal, foi um programa de dar orgulho.
Tem alguma última mensagem que quer passar para os leitores?
Quero lembrar todas as mulheres e pessoas LGBTQIA+, além de pessoas não brancas, PCDs que estiverem lendo isso, que vocês podem estar dentro do ambiente de games sim. Vai ser muito difícil, vocês vão contra tudo e todos, mas se é realmente o que vocês querem, façam. Se não tentarem nunca vão saber. Tentem, vão atrás porque se não forem, quem vai por você?
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