Durante muito tempo e até hoje se repete a ideia de que “os jovens não leem mais”. Culpam a internet, os streamings e os vídeos curtos. Mas essa narrativa caiu por terra durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro 2025. O evento literário bateu recorde de público desde a sua primeira edição, com quase 1 milhão de visitantes em apenas dez dias, e evidenciou uma tendência: a leitura nunca esteve tão viva entre os jovens brasileiros.
Se os livros impressos ainda parecem clássicos aos olhos do público mais velho, os caminhos para chegar a eles se transformaram. Muitos leitores da “Geração Z” hoje conhecem seus autores favoritos por meio de plataformas digirais como Wattpad, AO3, Fanfiction.net, e pelas comunidades que se formam em torno da leitura, como o BookTok (no TikTok) e o BookTwt (no X/Twitter). E essas histórias, nascidas na web, ganham versões impressas e até adaptações para cinema e TV.
Esse fenômeno foi discutido com emoção e profundidade no painel “Histórias que crescem com a gente”, no palco Apoteose Shell da Bienal, com a participação dos autores Paula Pimenta, Aimee Oliveira e Vitor Martins, três nomes que não apenas escrevem para o público jovem, mas que têm acompanhado sua transformação ao longo dos anos.

“O maior presente é formar leitores”
Paula Pimenta, referência consolidada da literatura adolescente no Brasil desde o sucesso do livro Fazendo Meu Filme, de 2009, se emocionou ao lembrar que muitos leitores chegam a ela dizendo que seus livros foram os primeiros que leram. “Muita gente começou a ler novinho com meus livros. Ouvir ‘eu não lia nada até ler seus livros e agora eu leio de tudo’… Isso é a melhor coisa que a gente pode escutar.”
Apesar da longa trajetória, a escritora ainda se surpreende com o público novo que encontra a cada nova obra, formado por crianças de 9, 10 anos, e adultos que acompanham suas personagens desde o lançamento de Fazendo Meu Filme 1. “É muito gratificante ver que os leitores estão crescendo com nossos personagens, e novos estão vindo e vão crescer também lendo.”
“Hoje eu tenho leitores que me conhecem há 10 anos”
Para Vitor Martins, autor de livros como Quinze Dias e Um Milhão de Finais Felizes, é “surreal” acompanhar esse crescimento. “Tenho leitores que dizem: ‘eu lia seu livro quando tinha 13/14 anos e hoje estou na faculdade’. Então o livro acompanha os leitores nesse salto de vida. Principalmente na adolescência, onde cada ano importa, e a gente sente que eles crescem mais rápido”, contou.
O rapaz, que escreve focado no público jovem LGBT+, fez questão de ressaltar uma mudança significativa que também veio com o tempo: o aumento da representatividade. “Na minha primeira Bienal, em 2017, meu primeiro livro Quinze Dias não tinha um lugarzinho numa prateleira. Hoje eu olho pro lado e tem tantos autores escrevendo literatura LGBT+ pra jovens, que dá pra montar uma mesa inteira. Isso pra mim é muito significativo.”

“A internet tornou possível eu ser escritora”
Aimee Oliveira, jovem autora que começou escrevendo no Orkut e migrou para o Wattpad, reforçou como as novas tecnologias ajudaram não só leitores, mas também escritores. “Eu não conseguia cogitar a profissão de escritora lá em 2007. Ver que posso ser um exemplo de que é possível escrever com a nossa realidade, aqui no Brasil, me deixa muito feliz.”
Ela também relatou um caso de como incentivar pessoas da nova geração a lançar suas próprias histórias, tendo em vista a facilidade que as plataformas oferecem para fazer isso, conseguindo atingir uma audiência de forma mais certeira: na época do Orkut, uma menina que leu suas histórias e a pediu para que lançasse sua história pessoal. “Eu disse: por que você mesma não escreve? Hoje ela é escritora”, contou a ídola.

Escrever também é crescer
Não são só os leitores que crescem na medida que o tempo passa. Os autores também compartilharam como suas próprias trajetórias mudaram ao longo dos anos. Paula falou sobre como sua escrita, que antes era apenas um hobby, virou uma profissão. “Hoje tenho disciplina, rotina. Meus livros me levaram para o cinema, quadrinhos. Eu não esperava isso. A literatura me transformou.”
Vitor, por sua vez, revelou que deixou de lado a ideia de escrever “o livro sério” para aceitar sua escrita como ela é: divertida, sensível e cheia de humor. “Agora estou escrevendo meu livro mais adulto ousado, mas que ainda é engraçado. Aceitei que o meu jeito de escrever também é muito maneiro.”
Aimee contou que começou escrevendo histórias com protagonistas muito parecidas com ela, como se fossem fanfics da própria vida, especialmente na época em que era fã da novela Rebelde. Com o tempo, passou a criar personagens que querem e agem de forma diferente dela, e agora seu próximo passo é narrar a partir do ponto de vista de pessoas bem distintas, como os avós das protagonistas. “Hoje em dia eu sinto necessidade de colocar um idoso guiando aquele jovem nos livros”, disse, explicando que isso se tornou frequente nos últimos três anos. “A gente vai evoluindo como escritora e começando a perceber as coisas de uma forma diferente. E eu amo acompanhar essa viagem, não só do mercado literário como um todo, mas de como eu mudei com ele”, complementou.
Quando as histórias crescem junto com os escritores
Questionados sobre o reflexo do amadurecimento pessoal nas suas obras, e como conseguir se manter em sintonia com seu público-alvo durante esse processo, os autores compartilharam algumas de suas experiências.
Pimenta lembrou que começou escrevendo pensando que só suas amigas leriam, revivendo a adolescência nos anos 90. “Eu escrevi baseado na minha adolescência lá dos anos 90, então eu realmente tive um susto, uma surpresa quando eu comecei a atingir os adolescentes de hoje e continuo atingindo.” Para ela, não é preciso se forçar a estar em sintonia com o adolescente atual: “Acho que você tem que ser fiel àquilo que faz sentido pra você em termos de emoções. As emoções, os sentimentos, as descobertas são as mesmas em qualquer geração.” Mesmo com mudanças de moda, trilha sonora e costumes, o importante é emocionar: “No momento que eu estou me emocionando escrevendo, eu também vou emocionar os leitores.”
Martins teve uma experiência diferente. “A minha adolescência foi uma época horrível na minha vida. Então, quando eu escrevo, faço isso justamente para me curar, para me reconectar.” Ele vê os trabalhos como uma maneira de transformar o que viveu: “Uso meus livros como um meio para que as adolescências de hoje sejam diferentes, sejam mais leves, mais cheias de livros e de amizades.” Ao lançar Mais ou Menos 9 Horas, percebeu que ele marcava uma nova fase: “Esse vai ser meio que meu livro de transição, então ele vai ser um pouco mais maduro. Ele é uma visão adulta a respeito da adolescência, onde eu a revisito com o olhar de hoje”.
Já Oliveira disse que sua escrita é atravessada por experiências pessoais, especialmente uma sensação persistente de não ter feito a escolha certa na juventude: “Eu sinto que eu escolhi a faculdade errada, então eu estou presa nesse limbo temporal.” Por isso, suas protagonistas costumam estar nesse ponto decisivo da vida: “o pós ensino médio, o que ela vai fazer da vida, quais são as opções pra ela?” Em Recalculando a Rota, por exemplo, a protagonista escolhe um caminho fora da universidade tradicional. “Ela faz um curso profissionalizante de estética, quer abrir uma clínica e é um sonho da vida dela. É uma profissão super válida.” Para a moça, dar voz a essas possibilidades também é uma forma de expandir o universo literário: “O meu universo à volta vai conspirando para fazer o meu universo literário crescer.”

O livro certo para o leitor certo
Outro ponto importante debatido no painel foi a maneira como os livros encontram seus leitores, e vice-versa. Vitor compartilhou que uma das coisas que considera mais legais é que hoje já consegue recomendar livros de acordo com a idade, gosto e identidade de quem está na fila de autógrafos. “Se chegam uns gayzinhos de 20 e poucos anos de idade, indico Um Milhão de Finais Felizes porque sei que vão gostar. Se chega uma caminhoneirinha de calça larga, cabelo curtinho, eu já falo: Se a Casa 8 Falasse vai ser o favorito dela.”
Essa personalização, segundo ele, reflete o quanto os livros ganham vida ao longo do tempo e crescem junto com os leitores. “O livro vai continuar encontrando o leitor no momento que ele precisa. Não importa a ordem em que foi escrito.”
Literatura jovem com responsabilidade e leveza
A discussão também passou pela responsabilidade de escrever para jovens leitores, especialmente aqueles que estão se descobrindo.
Paula Pimenta reconheceu o desafio de equilibrar temas maduros para leitores muito novos. Contou que, ao escrever Fazendo Meu Filme 3, travou na cena da primeira vez da protagonista e até foi para a terapia. ”Eu falei: o que eu vou fazer? Tenho leitora de nove anos e de mais de 20. A Fani tem 18. A minha psicóloga falou: ‘essas leitoras de 9 anos têm que entender que estão lendo uma história onde a personagem tem 18 anos’. Então cheguei em um ponto que entendedores entenderão. Hoje, a de nove anos só ia ler ‘E então ele apagou a luz’, e os mais velhos saberão o que aconteceu depois que a luz foi apagada”.
Vitor Martins disse que tenta focar na idade do personagem, não do leitor. “A gente não tem controle sobre quem vai ler. Eu tive que entender que não sou pai e mãe de leitor. Se tentar agradar todo mundo, o livro vira algo genérico. Tento escrever da forma mais crível possível, fiel ao personagem. Mas a Paula falou uma frase que me impactou: ‘Tudo que eu escrever, alguém vai ler’. É verdade, não tô escrevendo no meu diário. Então sim, é uma responsabilidade. Mas é escolher até onde a gente consegue abraçar.”
Aimee Oliveira contou que só pensa nisso na revisão. “Eu deixo isso para a edição. Escrevo focada no que faz sentido para a história. Mas quando vejo o leitor no estande, aí penso: ‘Será que ele tem idade para entender que empinar moto é errado?’. No livro o personagem acha o máximo e isso me inspirou a escrever. Mas só penso nisso quando já é tarde demais.”
Vitor também comentou sobre o peso emocional de escrever histórias que impactam diretamente na vida dos leitores. “Às vezes, a gente ouve: ‘Seu livro mudou minha vida’. E isso assusta. Porque, e se mudou pra pior? Mas eu tento lembrar que a coragem é do leitor. Eu só dou o empurrãozinho.”
Uma história marcante foi quando um leitor trans disse a ele que finalmente havia feito sua transição e escolheu o nome Arthur por causa do protagonista de Um Milhão de Finais Felizes. “Foi o primeiro autógrafo com o nome verdadeiro dele. Isso me quebrou.”
A força dos nichos literários digitais
Essa nova geração de leitores não está mais presa às prateleiras de livrarias. Ela nasce nas telas, e com muita força. Plataformas como Fanfiction.net, comunidades como o BookTok e BookTwt criaram verdadeiros nichos culturais de leitores e escritores. O que antes era fanfic hoje é sucesso de vendas e, muitas vezes, adaptação cinematográfica.
A Bienal do Livro do Rio foi o espelho disso: filas gigantes para autores revelados na internet, livros que viralizaram no TikTok, jovens com seus cadernos de autógrafo e celulares gravando cada momento.
O futuro da literatura já chegou, e tem 15 anos!
Se há algo que a Bienal carioca deste ano provou é que a literatura não está morrendo, ela está se reinventando com os leitores. Os jovens brasileiros leem, sim. Leem muito. E leem com o coração aberto, prontos para se emocionar, refletir, sonhar.
Seja no AO3 ou na livraria, no TikTok ou no Kindle, ou buscada após assistir uma adaptação nas telas, a leitura continua sendo um dos maiores atos de conexão e transformação. E, agora, mais do que nunca, quem transforma não são apenas os livros: são também os leitores.