Hoje venho com mais uma coletânea de Junji Ito que a Pipoca & Nanquim nos deu o privilégio de ler. Na verdade, Zona Fantasma é muito mais do que “mais uma” coletânea, é uma obra de cair o queixo e bater palma.
Diferente das publicações anteriores, essa traz histórias recentes do autor, todas escritas entre 2020 e 2022. Ou seja, Junji Ito usou o período da quarentena da COVID-19 para nos presentear com oito histórias malucas, arrepiantes e repugnantes.
Inclusive, acredita que esses contos surgiram em um período que o autor passou por um bloqueio criativo? Pois é, nem eu.
Além disso, a publicação vem com mais 4 cards colecionáveis exclusivos, um marcador de página e, uma novidade incrível, um deck box pra guardar os cards. Mais uma vez, obrigada Pipoca & Nanquim, por nos prometer o mundo e entregar ainda mais.
Também, o design dessa coletânea é diferenciado, fugindo do padrão das anteriores e deixando ela realmente única. A sobrecapa tem verniz localizado e a capa é em tons de preto, cinza e branco, com pequenas ilustrações que nos avisam o que está por vir.
Então, vamos conhecer a Zona Fantasma e as histórias que o mestre do horror inventou dessa vez.
A Descida das Carpideiras
O conto que abre essa coletânea é diferente de qualquer outra história que eu já li. Nela, Mako e Yuzuru, um casal em viagem de noivado, para em uma pequena cidade. Eles se deparam com um velório, onde uma mulher chora descontroladamente. No entanto, após esse contato, Mako passa dias, semanas e meses chorando sem parar. Então, para tentar solucionar esse problema, eles voltam à pequena cidade e descobrem a Descida das Carpideiras, uma vila de mulheres cuja missão é chorar pelos mortos.
Meu sentimento ao longo da história foi basicamente “gente, que loucura”. O suspense, essa angústia do pranto ininterrupto, a vila fantasmagórica e o certo fanatismo das carpideiras te prendem na história. Muito boa.
Madona
Agora, vamos para um colégio católico só de meninas, comandado por um diretor e sua esposa, a vice-diretora. Acompanhamos Maria, uma estudante linda, inteligente e bondosa, que se intriga com a agressividade da vice-diretora. Além disso, nota uma substância estranha saindo do ouvido de algumas garotas, estátuas de sal e a misteriosa “turma especial” do diretor. No fim, Maria descobre que esses mistérios estão interligados da pior maneira possível, usando a imagem da mãe de Jesus para cometer os piores pecados.
Manipulação, morte, indícios de abuso infantil, orações para uma estátua que chora sangue e o melhor do traço de Junji Ito. Realmente, Zona Fantasma não está pra brincadeira.
Corrente de Espíritos em Aokigahara
Para se juntar na saga da maluquice, nessa história acompanhamos Norio e Mika, um casal que decide tirar a própria vida na floresta de Aokigahara. No entanto, intrigados por um fenômeno anormal no lugar, eles decidem esperar até o próximo dia. Eles encontram uma corrente de espíritos que percorre a floresta e aparentemente tem poderes curativos. Porém, as consequências de se banhar nessa corrente são tão irreversíveis quanto a morte.
Sinceramente, foi o “final feliz” mais esquisito e desconfortável que eu já vi. Posso chamar de final feliz? Bom, ninguém morreu, o que eu acho muito bom, mas foi de um jeito horroroso e, cá entre nós, meio nojento.
Ao Toscanejar
Takuya é um jovem adulto que suspeita estar matando pessoas enquanto dorme. Ele tem as lembranças dos assassinatos, mas não consegue acreditar estar fazendo tamanha barbárie. Então, Kanami tenta ajudá-lo a provar sua inocência, mesmo que acabe se colocando em risco. Será que ele realmente é tão inocente quanto pensa?
Ao Toscanejar pesa mais pro lado de investigação criminal do que de sobrenatural e horror cósmico, no meu ver. O que, de modo algum, é algo negativo. Junji Ito consegue nos enganar em cada página e, quando acreditamos ter solucionado o mistério, planta mais dúvidas ainda. O final me pegou de mais e ainda hoje me pergunto o que aquilo verdadeiramente significa.
Soberano Demônio da Poeira
Um garotinho gosta de explorar os hotéis abandonados da cidade onde mora, antigamente um lugar badalado que hoje está caindo aos pedaços. Porém, seu pai é um homem severo que tem aversão a poeira e ao suposto Demônio da Poeira. Assim, repreende severamente o garoto e faz suas duas empregadas limparem a casa de cima a baixo todos os dias. O garoto descobre, no entanto, que a poeira é feita de restos mortos de pessoas e está vindo do sótão da sua casa.
Primeiro, me lembrou O Encanamento que Geme, essa compulsão maluca pela limpeza. Mas a história foi pra um lado muito mais psicótico, nojento, grandioso e horrível dos seres humanos. Antes pensava “como assim um demônio da poeira, vai ser meio tosco”. Não foi. Foi o contrário de tosco. Maravilhosamente desconfortável, eu fiquei — literalmente — de boca aberta.
Vila do Éter
Um grupo de amigos vai visitar a cidade natal de um deles, mas encontram o lugar praticamente abandonado. Além disso, a cidade está cheia de dispositivos moto-contínuos, que se mexem eternamente, desafiando as leis da física e o que achamos ser possível até o momento. Então, quando eles encontram um cientista que ainda vive ali, descobrem mais sobre o funcionamento dos moto-contínuos. Porém, por trás da invenção tecnológica está uma verdade que nem a ciência pode explicar.
Bom, é uma história visualmente desconfortável, ver todos esses dispositivos mecânicos instalados em seres “vivos”. De qualquer forma, Junji Ito fez uma boa pesquisa pra fazer esse conto, pois vi que ele usou modelos que realmente existem. A moça que aparece na sobrecapa demonstra alguns deles e, devo admitir, essa ilustração me deu expectativas que não exatamente foram 100% cumpridas.
Tio Ketanosuke
Agora, conhecemos Hotaru, uma garota órfã que carrega uma energia muito pesada desde que nasceu. Em busca da solução desse mistério, ela vai parar na Mansão dos Hikizuri e, pra variar, se torna vítima das vigarices deles. Porém, determinada a compreender essa energia que a rodeia, Hotaru resgata o irmão mais novo dos Hikizuri de uma masmorra. Ela apenas não sabia que havia um bom motivo para ele estar preso até então.
Zona Fantasma traz a volta dos bizarros irmãos Hikizuri, suas fraudes e todo o carma maligno e fantasmagórico que carregam. Inclusive, essa é mais ou menos a continuação das histórias deles em Mortos de Amor, outra coletânea publicada pela Pipoca & Nanquim. Enfim, esse conto nos deixa da dúvida se chamamos o conselho tutelar ou um bando de exorcistas pra ajudar essa criança.
Carapaças do Pântano Manju
Pra finalizar essa coletânea de forma tão chocante quanto ela começou, essa história é cercada por superstições. Nela, um pântano é lotado de tartarugas que, teoricamente, carregam o rosto e a alma de pessoas que sofreram numa tragédia. Além disso, os corvos da região fazem um ritual grotesco com esses animais, levando a carapaça como um mau agouro para algumas pessoas. Fissurado nessas tartarugas, um homem altera a ordem natural das coisas. Os humanos não deviam mexer com forças que não compreendem.
Realmente, finalizou Zona Fantasma com chave de ouro. É uma história cheia de simbolismo, ironias, crueldade e superstições. O final chega a ser cômico, além de macabro. Um ótimo conto, para uma coletânea bem intensa.
Posfácio
Algo que eu amo e, felizmente, tem nessa coletânea, é o Posfácio escrito pelo próprio Junji Ito. Afinal, acredito que incluir essas breves páginas na publicação agregam um valor imenso. É como se estivéssemos tendo uma conversa direta com o autor, algo que não é possível em muitas publicações.
Aqui Junji Ito fala um pouco sobre o período em que escreveu essas obras — entre 2020 e 2022, ápice da pandemia da COVID-19. Além disso, compartilha a angústia de estar sem ideias para criar novas histórias, tendo que recorrer a anotações de cadernos antigos.
Também, o autor traz o que o inspirou para escrever cada uma das histórias. Por exemplo, sua aversão à poeira, um bobo jogo de palavras, uma divagação sobre roldanas, entre outras.
Adoro a forma descontraída e meio caótica que Junji Ito fala sobre seu processo de criação de histórias. No fim, o mestre do horror, esse autor renomado e premiado, reconhecido mundialmente, dono de histórias marcantes e incríveis, é muito “gente como a gente”.
Conclusão
Zona Fantasma é, em uma palavra, arrebatadora. Um coletânea chocante, com histórias criativas, sinistras, cruéis e gráficas em vários níveis diferentes. Cada capítulo te deixa mais boquiaberto do que o anterior e o traço tão característico de Junji Ito deixa tudo ainda mais desconfortável.
Então, meus amigos sucolinos, esse momento chegou! Finalmente, chegou um mangá que bateu de frente e se igualou — se não superou — Dismorfos para mim. Uma publicação perfeita, sem tirar nem por.
Junto a isso, o deck box para guardar todos os 32 cards colecionáveis que vieram nas outra coletâneas é um presente especial, mostrando o cuidado, dedicação e consideração que a Pipoca & Nanquim tem com seus leitores.
Não só recomendo, como digo que Zona Fantasma é uma leitura obrigatória pra quem se interessa pelo gênero e por Junji Ito. Mas se prepare, pois uma vez que você leia essas histórias, nunca mais poderá esquecê-las. Então, você está preparado?